
O Rock In Rio, um dos raros festivais de música (cof cof) do país onde nos podemos cruzar com homens de calças vermelhas e pullover pendurado aos ombros, começou esta quinta-feira com o enorme concerto de Bruce Springsteen e a sua E-Street Band.
Mas afinal qual é a surpresa? Nenhuma. Bruce Springsteen é uma das grandes estrelas mundiais do mundo da música. Não é por acaso que a organização do Rock In Rio altera as datas do evento (inicialmente estava previsto acontecer esta sexta e sábado, passando então para quinta e sexta) só para poder contar com o Boss. É um tiro certeiro, mesmo que seja num dia de semana e que no dia seguinte 90% dos espectadores vá trabalhar às 8h ou às 9h da manhã. É por isso que cerca de 67 mil pessoas (números da organização) marcaram presença no Parque da Bela Vista.
Assistir a dois concertos de dois colossos do Rock n’ Roll em actividade há mais de trinta anos é quase como visitar uma biblioteca centenária com todo o tempo para gastar e desfrutar. Tudo se transforma num puro prazer onde as memórias se revisitam com atenção a todos os detalhes, onde a novidade não dá mais espaço para surpresas, deixando os sentido num limbo de identidade e celebração. Foi isso que se passou ontem à noite com os eternos Xutos & Pontapés na abertura da cerimónia antes que o gigante Bruce Springsteen e a sua eterna E Street Band fechassem mais uma noite de antologia.
Bruce Springsteen e a E Street Band entraram com tudo ao som de “Badlands”, acendendo o rastilho para mais uma noite cheia de reencontros. E se tinham lido aqui que esta digressão era essencialmente dedicada à celebração dos 30 anos de The River e que o normal seria o duplo álbum ser tocado na íntegra…esqueçam. Claro que os temas de The River apareceram quase todos, mas a celebração estava longe de se esgotar aí. Assim houve oportunidade de ouvir praticamente todo o Born In The U.S.A. como também de ter direito a uma visita guiada a temas anteriores (“ Darkness In the Edge of Town”, “The Promise Land”,“Born To Run”, etc, etc). Se os Xutos nos deram uma “revisão da matéria dada” o Boss apresentava-nos uma” introdução à obra completa”.
Ao contrário da prestação de há dois anos em que Bruce Springsteen vinha promover o seu último trabalho ( Wrecking Ball ) desta vez tudo foi muito mais abrangente e mais descontraído com um evidente redução de elementos da banda especialmente na quase supressão da secção de metais. Por outro lado, e talvez por ter excedido o seu tempo de actuação em 2014, desta vez as pausas entre temas eram mínimas chegando-se a quatro seguidas sem parar não havendo tempo para aplausos. Mas Bruce Springsteen e a E Street Band não são apenas um somatório de músicos ou um acumulado de executantes que leva a sua obra a todos os cantos do mundo. São essencialmente uma indústria, uma fábrica extremamente bem oleada que apresenta um catálogo às audiências de forma profissional.
De destacar duas notas dissonantes no som que registámos nas duas actuações. A distorção ocasional que ocorreu pelo menos três vezes, bem como a sobreposição das vozes de segunda linha sobre o vocalista (Bruce). Falhas que numa organização deste género não se podem admitir. Esperemos que tenham sido os nervos do primeiro dia e que nos próximos tudo esteja outra vez como sempre esteve, isto é, sem falhas.
Mais do que a novidade ou a surpresa, basicamente a ida a concertos é como engatar um cartão de memória, ler um clássico do século XIX sem ter que fazer teste no dia seguinte. Apenas pelo prazer de ler. O rock é feito por homens comuns que analisam dentro dos seus dias os problemas comuns que todos temos. Passa por cima de fronteiras, religiões, partidos políticos, estratos sociais. Durará enquanto houver homens comuns e problemas comuns. Para uns acabará por se tornar numa religião, sendo os concertos as suas celebrações, as suas missas. Para os mais novos será um espaço de surpresa e afirmação, uma das primeiras maneiras de perceber que se pertence a qualquer coisa antes de a conhecer. Culturalmente é a porta aberta que nos mostra que há muito mais na vida do que a “vida” que nos querem obrigar a conhecer. “We learn more from a three minute record than we ever learn in school” cantou o Boss. E tudo isto dura e continuará a durar porque ao partilhar as emoções, os dramas e as alegrias que acabam por habitar na cabeça de todos, acabamos por ser devolvidos ao nosso próprio espaço, relegados à importância e à Liberdade que nos pertence.
E o concerto, obviamente, não desiludiu ninguém. Foram quase três horas de músicas, espectáculo e encanto que passaram de rajada. Springsteen é o Boss porque é encantador. Aquele sorriso constante que é já uma imagem de marca vê-se que é genuíno. Há ali um prazer enorme que se vê e se sente. E depois há toda uma aura de estrela. Springsteen é a América. Prince era mistério, Michael Jackson era fantasia, Bob Dylan é poesia. Springsteen é a América. A América do rock, claro, mas também do homem comum. Todos gostam de Springsteen, desde o bombeiro herói de Nova Iorque ao cowboy texano, passando pelo plástico californiano, ninguém lhe fica indiferente. E essa é também um pouco da magia de Springsteen.
Em palco, o respeito e a admiração entre a E Street Band e Bruce, fruto de um rico historial, notam-se a milhas. O que só significa uma coisa: sim, estão a tocar com uma lenda viva mas esta lenda é o tipo mais simpático do mundo. E voltando a essa simpatia, Bruce, apesar das quase nenhumas interrupções entre músicas, envolve-se com o público sempre que possível. Para além das inúmeras vezes que se mistura com os presentes, percorrendo a passadeira que entra pela multidão adentro, cumprimentando todos os que consegue, Springsteen vai aceitando também tudo o que lhe esticam e atiram. Camisolas, cartazes, bandeiras, o Boss aceita tudo, qual Fernando Mendes no Preço Certo, devolvendo algumas ou deixando cair outras. E isto delicia a multidão, ávida de um aperto de mão ou de um toque que lhe fique para a eternidade.
A abrir para Springsteen estiveram os Xutos & Pontapés. Não há Rock In Rio que se preze sem Xutos e sem Ivete Sangalo. E lá diz o ditado: Xutos é Xutos. Em média, o português normal vê cerca de 4 concertos de Xutos por década de vida. Não é nenhum cálculo do INE, somos nós a fazer as contas por alto, mas não estamos certamente longe da verdade. E um concerto de Xutos não engana, são sempre fiéis a si próprios como ao seu público, que curiosamente (ou não) por mais anos de carreira que tenham continua a renovar-se. Se há fãs com tantos anos de apoio aos Xutos quanto eles têm de existência, há outros que de tão tenra idade, só os podem conhecer por “Ai Se Ele Cai” ou “O Mundo ao Contrário”. São 37 anos de rock que estão naquelas mãos. Digam o que disserem, voltamos ao ditado que já deveria fazer parte dos dicionários: Xutos é Xutos. O concerto começou com o início da noite (eram 22h) e um pouco morno com “Enquanto a Noite Cai” e “Salve-se Quem Puder” mas foi crescendo e aquecendo até acabar em altas com três clássicos sempre indispensáveis como “A Minha Maneira”, “Maria” e “Casinha”. Ao todo foram 17 canções que ziguezaguearam entre o mais clássico ao mais recente. O fogo de artifício maravilhou os presentes no final do concerto. Estavam criadas as condições para a chegada do Boss.
Antes ainda dos “nossos” Xutos estiveram os galeses Stereophonics em palco, a abrir a tarde/noite de concertos. A banda de Kelly Jones não é propriamente novata pois já tem nove álbuns editados mas o seu sucesso nunca alcançou grandes distâncias, pelo menos fora do Reino Unido. O pop/rock algo elaborado, com toques de piano, não entusiasmaram por aí, servindo como música de fundo para quem fazia as habituais infindáveis filas para os brindes e mais atrações circenses.
Pelo palco Vodafone passaram igualmente três bandas. A tarde começou com os portugueses The Sunflowers, aos quais se seguiram os Keep Razors Sharp e por fim os Black Lips.
É um palco que, no seu todo, a nós Altamont, nos diz mais. Infelizmente consideramos é que os horários não são os melhores – abrir um palco por onde vão passar apenas 3 bandas às 16h45 é um absurdo. Foi a essa hora que os The Sunflowers começaram a actuar, com os Keep The Razors Sharp a seguirem-se às 18h. Se não chegámos a tempo para estes últimos, muito menos chegaríamos para o primeiro. Mas se pensarmos que o terceiro e último concerto do segundo palco mais importante começou às 20h e acabou pelas 21h e a partir daí nada mais se ouviu ali, ficamos com alguma sensação de frustração.
Mas bem, pelo menos conseguimos então assistir ao concerto de Black Lips na sua totalidade. Estes norte-americanos, vindos de Atlanta, são aquilo a que chamamos em bom português, uns bardajões. Bem, falamos mais em concreto de Cole Alexander, cujo principal hobby é cuspir. Vá lá é que é para si próprio. Começou o concerto a cuspir para a sua guitarra e contámos outras três vezes em que o fez para o ar. Foi uma imagem que ficou (infelizmente) mas que não belisca contudo o bom concerto que nos ofereceram. Os Black Lips, convenhamos, não têm hits incontestáveis ou álbuns que sejam incontornáveis. Mas têm um grande conjunto de boas canções, divertidas, animadas, ritmadas, que nos dão vontade de abanar um pouco os ossos. Começaram o concerto com alguma contenção mas rapidamente se soltaram e contagiaram o público. Apesar do seu ar e historial arruaceiro, os Black Lips acabaram por criar uma boa energia entre os presentes. Foi com “Bad Kids” que terminaram numa altura em que já havia uma autêntica festa de papel higiénico (iniciada por um membro da crew da banda) e com muito moche à frente do palco.
No meio disto tudo ainda conseguimos dar um salto à tenda electrónica para ver Fandango. O novo projecto de Luis Varatojo (ex-A Naifa, Peste & Sida) e Gabriel Gomes (ex- Sétima Legião, Madredeus) é uma surpresa das boas. Estamos a falar duma fusão entre batida electrónica, acordeão e guitarra portuguesa numa experiência que nos entra agradavelmente pelo corpo adentro. A dupla veio apresentar o seu primeiro álbum, de título homónimo e se não beneficiaram por abrir um palco que fica no lado oposto do parque, do palco principal (para quem não conhece, é longe…) conseguiram contagiar o ainda grande número de pessoas que percorreram essa larga distância. Fandango por vezes pode fazer lembrar um pouco de Gotan Project mas acaba por nos tocar duma forma diferente porque nos toca de uma forma bem lusitana, bem nossa.
Texto: Francisco Pereira com Artur Carvalho / Fotos: Francisco Pereira