
Segundo dia da mexefesta. Quando pensamos que é já o último, lembramo-nos de como os dois dias nos sabem sempre a pouco. A utopia urbanomusical é curta e se calhar a saudade e a nostalgia que sempre nos deixa e provoca vem dessa mesma curteza – por isso, deixemo-la assim.
Começámos por ver, ouvir e sentir Jenny Hval. Sala esgotada para a menina bonita da art pop, que nos trouxe – entre outras – as canções de Apocalypse, girl. No palco um espírito indomável domava os que pairavam pela plateia, lançando polígonos musicais e baixos de fazer explodir corações sobre os seus súbditos. “Let’s go to heaven”, cantava em “Heaven”, com uma voz que tinha tanto de castidade angelical como de demoníaca sensualidade. A boneca de porcelana, de peruca a rigor, titubeava com uma fragilidade que era também força, ameaçando estilhaçar-se e com os restos nos rasgar em pedaços. Deixámo-la quando nos disse que, até aí, tinha sido a parte religiosa do espectáculo – e que a parte diabólica se aproximava. Não por medo, não por receio, mas porque não faltava muito tempo para Benjamim tomar de assalto o palco da Estação Vodafone.FM. No caminho, a fila para assistir ao concerto de Bombino na sala escura do São Jorge anunciava mais uma sala esgotada.
Chegados ao Rossio, tomámos posição para o artista anteriormente conhecido por Walter Benjamin, agora sem Walter e com o apelido em bom português. Não demorou ele a deleitar-nos com as canções de Auto Rádio – “Eu quero ser o que tu quiseres”, “Tarrafal”, “Volkswagen”, “O Quinito foi para a Guiné” e tantas outras, sempre num registo lânguido, pesaroso e colonial. Queríamos ficar para “Os Teus Passos”, a mais orelhuda delas todas, mas o relógio alertava-nos para aquilo que estava prestes a acontecer a umas centenas de metros dali – falamos de Ariel Pink.
Esperávamos um Coliseu cheio, mas não foi isso que encontrámos. Alguns fãs iam chegando, outros curiosos para verem a irreverência cor-de-rosa com os seus próprios olhos, mas não foi suficiente para encher os Recreios por muito mais que metade da sua lotação. O Ariel Pink que encontrámos não nos pareceu o mesmo do último NOS Primavera Sound. No Porto assistimos a um concerto provocador, ousado, arrojado – tudo o que não aconteceu em Lisboa. A começar com um momento de improviso espacial, Pink prosseguiu com “Exile On Frog Street”, sempre debaixo de uma impenetrável luz azul. Num show onde reinaram sons mais convencionais e “fáceis de ouvir”, só mais perto do final tivemos um vislumbre do velho e camaleónico Ariel – nas canções “Dayzed Inn Daydreams”, “Picture Me Gone”, “Baby”, “Netherlands” e “Put Your Number In My Phone”. Comparações aparte, fomos como que arrastados em plácidas correntes aéreas e marítimas que nos levaram até à Terra do Nunca, à terra da sereia Ariel que queria ser Peter Pan no conto do Príncipe Sapo. O concerto terminaria sem encore, perante um Coliseu pouco entusiasmado que se esvaziava em direcção à Estação Vodafone.FM.
A noite mudava de rumo em Bombino, que nos levava ao seu Niger por mais de uma hora – ainda que nunca perdêssemos a moura Lisboa da vista. Foi mesmo preciso virem os mestres do continente de onde o Homem veio para nos mostrarem como se faz música e como se celebra a vida. Alegria, amor, energia e sinergia que nunca paravam de florescer dos riffs frenéticos das canções de Agadez e Nomad que, ao contrário de Ariel Pink, foram todas aceleradas. Houve tempo ainda para Bombino não resistir a regressar ao palco para dois encores emocionados e triunfantes. Como já era esperado, e não havendo quem não se deixasse contagiar pela vida que brotava da bem domada Stratocaster, o concerto dos mestres Tuaregues foi certamente um dos dois maiores destaques da noite. Do Hendrix do Niger passávamos para o Hendrix de Cabo Verde – ou tentávamos, já que Cachupa Psicadélica tocava os últimos acordes aquando da nossa chegada ao Palácio Foz.
Ao mesmo tempo que a Lisboa multicultural era celebrada, no Teatro Tivoli outro público escutava outra música. Nicolas Godin veio a Lisboa estrear em primeira mão o seu álbum de estreia a solo, Contrepoint. Em palco, Godin ocupou-se principalmente do baixo, seu instrumento de eleição, e trouxe mais 3 músicos, que se ocuparam da bateria, guitarra e de uns 6 teclados e um piano de cauda. Músicos de primeira linha, que ajudaram a executar com mestria as canções do disco, mas deixando um sabor meio agridoce. As canções foram, em palco, tal e qual estão em disco. O que por um lado é bom – tendo em conta as dezenas de camadas -, já que não se perdeu qualquer elemento. Mas também não sobrou espaço para qualquer coisa de diferente, inesperado. Música (e músicos) de inquestionável qualidade, mas demasiado presos ao que ficou registado em disco. A única diferença foi a ausência de Marcelo Camelo – que canta o single “Clara” e aqui foi substituído por um vocoder robótico na voz de Godin.
Chegou a madrugada, trazendo consigo os últimos concertos do maior festival de inverno de Lisboa. Após o término de Bombino, o destino de grande parte dos festivaleiros foi o Coliseu dos Recreios para ver Patrick Watson que, sem surpresas, tal como já nos habituara nas suas diversas passagens por Portugal, se tornou noutro dos homens da noite. Se o espetáculo de Bombino, com o seu domínio hendrixiano e ritmos africanos, nos trouxe calor e danças do mundo, Patrick Watson embalou noite adentro, encantando um Coliseu cheio, da plateia às galerias superiores.
Watson subiu ao palco em contra-luz, coberto por uma luz íntima e acolhedora, pelas 00h25. Sem demoras, despachou o motivo da sua passagem por Lisboa: apresentar as canções do seu novo disco Love Songs for Robots. Surpreendentemente, ou não – visto que Watson coleccionou, ao longo dos anos, uma impressionante legião de fãs em Portugal -, a plateia mostrou ter o trabalho de casa feito ao entoar alguns dos maiores momentos dos novos temas. Entre eles, a guitarra slide de “Good Morning Mr. Wolf” e a balada “In Circles”, cujo falsete de Watson provocou os primeiros arrepios do espetáculo.
Da boca de Watson não se entoavam apenas melodias encantadoras, melancólicas e introspectivas. Entre canções, o músico canadiano provava ainda mais a sua veia de entertainer: saltava de instrumento em instrumento, fazendo macacadas com os seus 5 colegas de banda, e entrava em diálogo com a plateia, reagindo com sorrisos exagerados a piropos – “I love you” e “you’re beautiful” foram os mais repetidos, embora se tenha ouvido por uma ocasião “faz-me um filho, Patrick”. E tal química entre Watson e Lisboa até faz sentido: o affair começou há mais de 5 anos. Entre os episódios enamorados do músico canadiano com a capital portuguesa, consta o Super Bock em Stock de 2009. Nessa segunda edição da primeira encarnação do Vodafone Mexefest, Watson foi objecto de veneração de São Jorge fascinado pelo seu storytelling – foi nesse concerto que o artista canadiano aproveitou uma falha de luz e som para serenar (e apaixonar) o público alfacinha.
Afinal de contas, o Coliseu estava a abarrotar pois já sabia para o que vinha. Se os novos temas foram o primeiro aviso de arrepio, seguiu-se um bombardeamento de Watson com os seus temas mais conhecidos, mascarados em arranjos e demonstrações de palco (quase) insólitas. Entre tais ousadias destacam-se duas: o angelical novo arranjo de “Man Like You”, tema de Wooden Arms (2009), que pôs uma guitarra não amplificada e uma gigante harmonia a três vozes ao redor do microfone de Watson; “Into Giants”, que juntou todos os seis elementos da banda ao redor do mesmo microfone, mas – desta vez – acompanhados pelas palmas sincronizadas e pelos canticos do público. Com o fim de “Turn Into Noise”, pela 1h35, tinha chegado a altura do primeiro encore. De luzes desligadas, os holofotes apontaram repentinamente para o camarote presidencial, onde Watson, a banda e o público cantaram “Man Under The Sea”, tema de Close to Paradise (2006), naquele que foi um dos momentos mais arrepiantes de todo o festival. Depois de “Lighthouse” e de “Luscious Life” o concerto parecia ter terminado. De satisfeitas almas cheias e luzes acesas, e sem ninguém no palco, quase metade do público já tinha partido para outros destinos. Mas, quando se pensava que a noite já estava feita, Watson surpreende um Coliseu e volta sozinho para se acompanhar no piano em “To Build a Home”, canção dos Cinematic Orquestra que conta com a voz do artista canadiano. Os primeiros acordes da canção provocaram o histerismo na audiência, acompanhado por uma onda gigante de pessoas que regressavam à plateia, arrependidas com a sua decisão de abandonar o recinto. A canção terminou às 2h03 e Patrick Watson despediu-se, agradecendo “o amor que Lisboa lhe dá”.
Tirando o desrespeito do público em relação aos momentos de silêncio, que levou Watson a exclamar “hey, vá lá pessoal” em “Lighthouse”, este concerto ficará, seguramente, bem presente nas lembranças (e ouvidos) de muitos que por lá passaram. Foi uma noite onde muito se amou e relembrou. Uma noite que veio para ficar. Obrigado Patrick, teremos sempre Lisboa.
Texto: Alexandre Malhado, Duarte Pinto Coelho e Francisco Marujo
Fotos: Francisco Fidalgo
Vídeo: Francisco Fidalgo e Pedro Ponte