Coliseu dos Recreios completamente cheio. Ao fundo vemos o retrato amarelecido pelo tempo de um tal de José Júlio. Na sua voz de grafonola, o velho fadista canta um pouco, e conseguimos ouvir com nitidez a agulha a percorrer as espirais do “78 rotações”. Quando o disco pára, Camané – muito bem acompanhado por Luís Guerreiro na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Paulo Vaz no contrabaixo – prossegue-lhe os versos. Primeiro momento mágico da noite: um dueto entre Camané e o seu próprio bisavô.
Mas o fado é “triste sorte”, como viria a cantar mais adiante. Notamos que Camané está tenso, não cantando com a sua habitual desenvoltura. Até que o enigma foi desvendado: um problema técnico com os seus auriculares de retorno, que acabam por ser substituídos. Agora, sim, reconhecemos o nosso Camané, o mais brilhante fadista da sua geração. Incontestavelmente.
Pouco depois anuncia “Gola Alta”, um dos poucos inéditos do novo disco “O melhor 1995-2013”, que serviu de pretexto a este regresso ao Coliseu. Henrique Segurado dá nova letra a “Senhora do Monte”, celebrizada por Alfredo Marceneiro. Camané explica: os fados antigos têm a capacidade de nos transportar para aqueles tempos recuados e parece que o letrista original, Gabriel de Oliveira, ofereceu o poema ao mesmo tempo a Alfredo Marceneiro e a Carlos Ramos, tendo este último gravado à pressa o tema, o que deixou Marceneiro furibundo.
Segue-se uma convidada “muito especial”: Aldina Duarte. Cantam sentados, frente a frente, e nem os 14 anos volvidos sobre a sua separação conseguiram apagar a ternura e cumplicidade daquele momento. Começam com a inventiva “Memórias de um Chapéu” (letra da própria Aldina) e prosseguem com “Fado com dono”. Instada por Camané a apresentar esta última canção, Aldina Duarte confessa a ansiedade de tanta novidade junta: nunca fizera duetos antes, nunca cantara com Camané antes, nunca explicara canções antes. Mas concede: conta-nos que Maria do Rosário Pedreira, “a letrista mais perto da sua alma”, conta neste “Fado com Dono” o mito de Orfeu e Eurídice a partir do ponto de vista feminino. Um único senão, novamente de ordem técnica: o microfone de Aldina está com o volume demasiado alto.
Saída Aldina do palco, Camané canta “Amiga Maria”, canção com música de José Mário Branco e letra de Manuela Freitas, dois dos seus colaboradores de longa data. Lembremo-nos da importância que José Mário Branco assume no apadrinhamento musical de Camané: são as suas composições e arranjos heterodoxos que o colocam na vanguarda do fado português, dando um forte contributo para a modernização da sua linguagem. E aí chegamos a uma das características identitárias do “Príncipe do Fado”, bem patente neste concerto: o elo permanente que estabelece entre a tradição e a modernidade, o passado e o futuro do fado. Para o bisneto de José Júlio, a tradição de Alfredo Marceneiro, a renovação de Alain Oulman e a contemporaneidade de José Mário Branco são-lhe igualmente naturais, como a sua eclética discografia bem revela.
Um pouco à frente, Camané partilha o palco com a cantora polaca Anna Maria Jopek. No seu último disco, Sobremesa, todo ele dedicado a músicas lusófonas, Jopek convida Camané a cantar com ele: “Noce Nad Rzeka” (“Sei de um Rio” em polaco). Honrado com o convite, e deslumbrado com a sua voz de sereia, Camané faz questão de repetir no Coliseu a magia do “Sei de um Rio” a dois. Cantam igualmente “Ser Aquele”, fado tradicional com um poema de Fernando Pessoa que parece ter sido talhado desde sempre para letra de fado: “Se estou só, quero não estar/ Se não estou, quero estar só/Enfim, quero sempre estar/da maneira que não estou”. No fim, Camané confessa-nos: “É a primeira vez que convido colegas meus para cantarem nos meus concertos. Sou tímido. É complicado.” É este o nosso Camané, modesto e autêntico, sem nunca cair em fúteis vedetismos.
Sem nos dar tempo para nos refazermos da poesia que ainda paira no ar, já Camané anuncia o próximo convidado: o grande Mário Laginha. Começam primeiro – só piano e voz- por interpretar a lindíssima canção do Fausto “Porque me olhas assim”; e continuam, no mesmo registo melancólico, com “Abandono” de Alain Oulman. Depois, entra novo convidado (Mário Franco) para “um tango a três”: piano, voz e contrabaixo. E, por fim, no mesmo registo de trio, uma das canções mais fortes de toda a sua discografia: “Ai Margarida”, escrita para Camané pelo próprio Mário Laginha, e com poesia roubada a Álvaro de Campos. Diga-se, aliás, que seria muito difícil que não surgisse algo de muito especial quando são reunidos os génios criativos de Camané, Laginha e Pessoa numa só canção. Este último, em versão ortónima, foi mesmo o “letrista” mais cantado da noite: “Mote”, “Ser Aquele” e “Quadras” tiveram a sua inconfundível assinatura.
E como os últimos são sempre os primeiros, o último convidado a aparecer é o grande Carlos do Carmo. Há qualquer coisa de profundamente simbólico no que está a acontecer, um clima de sucessão dinástica no ar, com a coroa do Fado a passar para a geração seguinte. O convidado é apresentado da seguinte maneira: “Agora, uma das minhas maiores referências, um grande amigo. Não tenho palavras.” Carlos do Carmo responde: “O prazer é meu. Eu amo-te desde os 11 anos.” Rimo-nos. Conta-nos, então, que quando Camané tinha 11 anos, insistiu para que Lucília do Carmo e o próprio o ouvissem cantar. Carlos do Carmo sempre detestou ouvir crianças cantarem o fado, mas quando Camané começa a cantar, depressa se apercebeu que ali havia, de facto, qualquer coisa. Passadas as apresentações, cantam “Por morrer uma andorinha”, tema que gravaram juntos para o disco de duetos: “Fado é amor”. Cantam depois uma rapsódia em que “Bairro Alto” (celebrizado por Carlos do Carmo) e “Marcha do Bairro Alto” (do reportório de Camané) são mescladas numa só canção, com o público a dar também uma ajuda, cantando também em uníssono. Talvez o momento mais forte de todo o concerto.
Na recta final Camané canta sem convidados. Em “A cantar”, bonita canção de José Mário Branco, Camané avisa: “Estamos a chegar ao fim, enchendo o coliseu outra vez. Até sempre”. Chega o encore, e quando já pensávamos que não haveria novidades, Camané surpreende-nos de novo: “Triste Sorte” é acompanhado apenas por dois contrabaixos (Paulo Vaz e Mário Franco), com um deles a emular a linha de viola e o outro, a linha de guitarra portuguesa. Uma delícia.
O concerto encerra com um segundo take de “Sei de um rio”, desta vez toda cantada na língua de Pessoa. Esta canção de Alain Oulman é tão especial que merece bem esta distinção. Voltamos para casa. É quinta-feira, passa da meia-noite e amanhã teremos que acordar bem cedo para o trabalho. Não importa. Vivemos um concerto memorável. Adormeceremos felizes.
Alinhamento:
- Súplica (Frederico de Brito, Ferrer Trindade)
- Último recado (Manuela de Freitas, Fado louco)
- Gola alta (Henrique Segurado, Raul Ferrão)
- Memórias de um chapéu (Aldina Duarte, Armando Machado, Fado Cunha e Silva)
- Fado com dono (Maria do Rosário Pedreira, Armando Machado, Fado cigano)
- Amiga Maria (Manuela de Freitas, José Mário Branco)
- Mote (Fernando Pessoa, Fado Isabel)
- Dança de volta (Luís de Macedo, Fado bailarico/ Fado Lopes)
- Ser aquele (Fernando Pessoa, Fado menor)
- Sei de um rio (Pedro Homem de Mello, Alain Oulman)
- Porque me olhas assim (Fausto Bordalo Dias)
- Abandono (David Mourão Ferreira, Alain Oulman)
- Afiches (Homero Expósito, Atílio Stampone)
- Ai Margarida (Álvaro de Campos, Mário Laginha)
- Por morrer uma andorinha (Frederico Brito, Fado menor em versículo)
- Bairro Alto (Carlos Neves, Francisco Carvalhinho) + Marcha do Bairro Alto (José Mário Branco)
- Senhora do Livramento (José Luís Gordo, Alfredo Marceneiro)
- Quadras (Fernando Pessoa, Fado alfacinha)
- A Cantar (José Mário Branco)
- Saudades trago comigo (António Calém, Fado Mouraria)
Encore:
- Triste sorte (João Ferreira Rosa, Fado Cravo)
- Mais um fado no fado (Júlio de Sousa, Fado Perseguição)
- A minha rua (Manuela de Freitas, Fado Alexandrino Antigo)
- Sei de um rio (Pedro Homem de Mello, Alain Oulman)
Fotos: Mário Romano