Ele tem muitos nomes. Nomes de mistério, nomes de esplendor, nomes de vergonha. Ele tem muitos nomes. Alguns chamam-lhe Mr. Ra. Outros chamam-lhe Mistery. Podem chamar-lhe Mr. Mistery.
No ano do centenário do seu nascimento, Sun Ra foi a irreverência escolhida pelo teatro Maria Matos para ser homenageada com pompa e circunstância no 45.º aniversário do teatro. E foi essa dupla celebração que deu o mote a uma tarde e início de noite cheias de música, cosmos e magia.
A festa começou com Nuno Rebelo em muito boa companhia – não era uma Arkestra, mas uma muito boa orquestra de violinos, sopros, percussão e cordas que nos levou pelos caminhos do espaço fora. Foi justamente com «We Travel the Spaceways» que começaram, com um coro cristalino e melodias de um jazz cósmico e progressivo. Numa das canções seguintes, retomava-se o heliocentrismo de Ra, com um sample da sua voz, que repetia a frase: «Well, I’m really not a man, you see. I’m an angel.» Assim, com uma constante repetição destas palavras, o anjo que era também sol voltou a guiar os instrumentistas.
Com muita nostalgia da sonoridade cosmonáutica dos anos 70, a banda de Nuno Rebelo mostrou que recebeu a mensagem do anjo que há 100 anos nos chegou. Uma bateria certinha, cheia de pozinhos mágicos que nos levantavam e embalavam na viagem; os instrumentos todos conjugados, provocando um caos instrumental que anunciava a chegada de uma qualquer força misteriosa ao palco. E assim voltou a entrar em cena, projectado no ecrã, o rosto de Sun Ra, que conduzia o órgão e as percussões tribais como ninguém.
Depois da tempestade, o swing. A vontade era de levantar e desatar a dançar, espernear e esbracejar. Tudo o que pudemos fazer foi bater o pé ao ritmo do chamamento que Ra nos fazia no ecrã: «calling all planet earth!» Os samples continuavam e a cada música sorríamos com a maneira como o grupo pegava neles e juntava os instrumentos, como por magia, alguns até parecendo canções de hip-hop, gingonas e de batida e baixo bem definidas.
Vestido a rigor (cada um de sua cor e feitio), o coro começou então a abandonar o palco – pela plateia. Assim, foram chamando as pessoas, para que os seguissem até à entrada. Daí, levaram-nos até às traseiras do teatro, onde com a banda toda, que se antecipou e já esperava por nós, acabaram o concerto em beleza, no meio do jardim – parecíamos estar em plena Primavera.
Depois de muita ambiguidade, entre duelos de experimentalismo e jazz mais certinho, chegou-nos o jazz mais convencional, mas não menos incrível, de Bruno Pernadas. Afastando-se do disco pelo qual se tornou mais conhecido, How Can We Be Joyful in a World Full of Knowledge, fomos possuídos por clarinetes tocados por dedos mágicos, virtuosismos de guitarra e vibrafone, solos sucessivos de todos os instrumentos, baterias e percussões intermináveis, etc.. «Planet Earth Day» foi um dos destaques do concerto, uma música da qual é impossível não se gostar, e que faz qualquer um apreciar jazz. Uma actuação imparável, estonteante, exímia e tudo o mais que nos deixou completamente boquiabertos. Tivemos também canções de embalar, com as vozes emprestadas de Margarida Campelo (Julie & the Carjackers) e Afonso Cabral (You Can’t Win Charlie Brown), ambos colaboradores em disco, com um delay na guitarra que nos enterneceu e fez voar, um pano de fundo com luzes paradas que nos fazia começar a ver formas cósmicas, uma sonoridade que nos fez sentir um Wall-e, sozinho no planeta Terra com algumas cassetes velhas de jazz a observar as maravilhas do céu, bossa nova…
Connosco, um Pernadas amigável, de guitarra, cabelo e t-shirt à Buddy Holly, e uma banda que se viu gostar tanto de tocar quanto o público gostou de ouvir. A banda terminou a sua actuação, depois de versões de temas originais de Sun Ra como «Brainville» e «Rocket Number Nine», com um tema mais agressivo e misterioso, a soar a filme de espionagem, que nos pôs os cabelos em pé.
Por fim, entravam em palco os Gala Drop. Depois de uma segunda espera à porta do teatro, entrámos na caverna da sala principal para sermos abalroados de psicadelismo e sensações que nos subiram à cabeça e nos fizeram dar voltas no espaço sem parar. Começando com uma autêntica trip de longa duração, o quinteto apresentou-nos jams e interpretações de Sun Ra de fazer cair o queixo e arrepiar até a mais forte espinha. Os teclados levaram-nos em câmara lenta para bem longe da Avenida de Roma, tendo a percussão levado os espectadores para o meio de savanas, em improvisações elípticas que induziam um estado alterado, como que um trip-hop mais repetitivo e menos escuro, apesar da iluminação sombria do palco.
Se em pequeno me via no teatro Maria Matos a assistir às peças infantis que lá eram postas em cena (tendo depois passado para o teatro Armando Cortez, quando das obras do primeiro), no 45.º aniversário vejo-me a celebrar a vida dele mais uma vez, rezando para que não se esgote nunca. Uma sala com condições e programação de qualidade inigualável em Lisboa e em Portugal. Longa vida ao Maria Matos.
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Fotos gentilmente cedidas por José Frade