Foi preciso quase um quarto de século para que Jarvis Cocker voltasse com o núcleo duro de uma banda adorada. E More, resultado dessa longa espera, é para ouvir e ouvir e ouvir… e continuar a ouvir. Uma inesquecível pérola musical.
Nem toda a gente pode ser Pulp, mas Pulp pode ser toda a gente. Está aqui, neste comum jogo de palavras, ou na simplicidade desta frase, a possível síntese de um grupo cuja génese vem do final dos anos 70, embora só a partir de 1994 conquistasse êxito mundial. São genuínos na forma como cantam (contam?) amores e desamores; decisões que mudam para sempre as nossas vidas (e tanto pode ser na realidade como no filme “As Pontes de Madison County”, entre Francesca Johnson e Robert Kincaid, ou seja, Meryl Streep e Clint Eastwood); pessoas estranhas, esquisitas ou apenas cada ser humano nos seus erros diários e, como na formulação de Samuel Beckett, procurando “falhar melhor”. Cada um de nós, mais ou menos desajeitado, mais ou menos capaz de dançar, mais ou menos capaz de se relacionar, mais ou menos capaz de crescer, no fundo, mais ou menos capaz de viver consigo próprio e com os outros.
More abre com “Spike Island”, a remeter para o local do famoso concerto dos Stone Roses, a 27 de maio de 1990, e com uma letra que é todo um plano de ação – “I was born to perform/It’s a calling/I exist to do this/Shouting and pointing”; “Tina” é uma nova obsessão, imaginada por um solitário que nunca dá um passo em frente; em “Grown Ups” há uma inconfundível batida típica do grupo, um violino marcante, a vontade de não crescer, mas, aos 61 anos, o amadurecimento assumido: “I am not aging/ I’m just ripening/Life’s too short to drink bad wine/And that’s frightening”; “Slow Jam” e, mais adiante, “Background Noise”, vêm da aventura que foi Jarv Is; “Farmers Market” é uma suave balada ao piano; “My Sex” ganha contornos de jogo de palavras sussurrado e sensual; “Got to Have Love” é um hino ao amor, palavra que o próprio vocalista confessa só ter podido dizer “perto dos 40”, e o vídeo da canção, num registo quase com 50 anos, filmado no Wigan Casino, remete para os tempos da disco. Mas não só, como pode perceber-se na letra: “You sit on your backside for 25 years, and you edge your bets, twist and bust and try and fail and work on an album and go to jail/All the time, hiding from the one thing that could save you”.
“Partial Eclipse” navega entre o desejo e a desilusão; “The Hymn of the North”, tocada já na digressão de 2023, traz a colaboração com o canadiano Chilly Gonzales, que já trabalhou com nomes como Feist, Drake ou Daft Punk. “A Sunset” é clara no desencanto das suas intenções: “Oh, I’d like to teach the world to sing/But the world has lost its voice.” E, fechando o álbum, parece estabelecer um diálogo com a canção que encerrava “We Love Life” há 24 anos, intitulada “Sunrise”. Em resumo, um disco com alta qualidade, na linha do percurso feito por Jarvis Cocker & Companhia.
Filho de um casal da classe média em que ela, Christine, trocou a formação em Artes para ser mãe a tempo inteiro e ele, Mac, DJ, músico e ator, a trocou por uma fuga para a Austrália tinha Jarvis apenas sete anos, o futuro vocalista dos Pulp foi crescendo com a irmã, Saskia, num subúrbio de nome Intake, na operária Sheffield. Enquanto adolescente, já exorcizava fantasmas, sobretudo o da timidez, através da escrita, idolatrando, entre outros, Leonard Cohen e Scott Walker. Criou a banda e desse período são It (1983), Freaks (1987) e Separations (1992). Ainda assim, começara por dedicar-se a estudos de Arte e realização antes de uma espécie de refundação do grupo em 1991. His ‘n’ Hers surgiu em 1994, o ano seguinte foi o do explosivo Different Class, e os Pulp conquistaram o estrelato, ao lado de outros casos sérios da Britpop como Blur, Oasis ou Suede, com canções como “Do You Remember the First Time”, “Babies”, “Underwear”, “Common People”, “Disco 2000”, “Mis-Shapes” ou “Sorted for E’z & Wizz”. Composições carregadas de talento, uma sonoridade simples e de enorme eficácia eram marcas de água da banda.
Depois veio o incidente na atuação de Michael Jackson durante os Brit Awards de 1996, a relação com a fama tornou-se perturbadora, drogas e depressão deixaram marcas e, após o lançamento de outros dois álbuns (o doloroso This Is Hardcore, em 1998, e We Love Life, em 2001), os Pulp pararam. Ou melhor, foram fazer outras coisas: Russell Senior (guitarra e violino), que saíra ainda antes de ser lançado o álbum de 1998, apostou num negócio como antiquário e não voltou; Jarvis foi viver para Paris com a mulher de então e o filho, tornou-se apresentador de programas radiofónicos na BBC 6, formou o projeto Jarv Is, escreveu música para cinema como o de Wes Anderson e publicou um livro, “Good Pop, Bad Pop”; Nick Banks (bateria) cuidou de cerâmica numa empresa familiar (e não perdeu o sentido da música, pois foi tocando num pub com a banda Everly Pregnant Brothers), Candida Doyle (teclas) seguiu para advogada, Mark Webber (guitarra e teclas) dedicou-se ao cinema e publicou a obra “I’m with Pulp, Are You?” Estes quatro voltam agora, com apoio de cordas, depois de um primeiro conjunto de concertos em 2011/12. “Foi o melhor que conseguimos fazer”, disse Jarvis Cocker, dedicando o disco a Steve Mackey, ex-baixista da banda, que, aos 56 anos, foi vítima de AVC em 2023.
Desde que John Lennon o cantou depois dos Beatles, “a working class hero is something to be”. E Jarvis é bem capaz de merecer esse estatuto. Há dias explicou a Anna van Praagh, jornalista que o entrevistou para o periódico The Evening, as mudanças de significado desse universo na atualidade: “A cultura da classe operária tinha uma certa vitalidade, capaz de entusiasmar a classe média e a classe alta. A classe operária que existe agora é diferente, porque não é a mesma coisa trabalhar num ‘call center’ ou na siderurgia a produzir alguma coisa.”
Não será possível outra espera de 24 anos para novo álbum, portanto, o melhor mesmo é aproveitar este muito bem e desejar que o próximo não demore muito tempo. Pode chamar-se “Much More”. Ou outra coisa qualquer – porque é bem provável que o poder das próximas canções alimente o fascínio.