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:papercutz em entrevista: “gosto de contar histórias que estejam impregnadas de alguma realidade”

O mais recente álbum de :papercutz, intitulado King Ruiner, que aliás já tinha passado pelas páginas do Altamont, foi o mote para esta conversa com Bruno Miguel, fundador e único membro “fixo” da banda.

Desde logo foi fácil perceber que as ideias de viagem, reinvenção e superação estão intimamente ligadas a este novo trabalho e mergulhar um pouco no universo criativo do produtor foi uma agradável surpresa.

Se é factual afirmar que :papercutz é um projeto de música eletrónica que nasceu em 2008 na Invicta,  também é verídico que desde o seu surgimento não tem parado de crescer e evoluir, e a enorme diversidade deste novo trabalho e as sonoridades exóticas que o compõem, são a prova disso mesmo.

King Ruiner, lançado em Março deste ano,  marca o regresso da banda aos “longa-duração”. Mas se imaginaram um disco recém-nascido e com dentes de leite, desenganem-se, porque King Ruiner não só foi lançado em plena pandemia como é já mais viajado do que muitos de nós, tendo passado entre a sua criação e desenvolvimento por Tóquio, Hamburgo, Nova Iorque e Porto. Conta-nos uma narrativa, em que o processamento digital de várias camadas de vozes cria uma espécie de epopeia eletrónico-moderna da música coral, em que o maquinal e o humano não só coexistem como se complementam e misturam harmoniosamente. Se este álbum podia ter sido feito num qualquer quarto, algures no Norte, só a partir de um computador? Podia, respondeu o Bruno em tom simpático e de sorriso pronto, mas “não era a mesma coisa”…

Altamont: E como todas as viagens têm um ponto de partida, porquê este título de “King Ruiner”?

Bruno Miguel: Uma das constantes em :papercutz é uma certa carga visual que os nomes carregam, já no nome do projeto isso acontece, gosto muito desse imaginário acho eu.  Na realidade, é uma brincadeira com palavras, em termos de cultura de rua, às vezes no hip hop, tens esta mania do “King of Something”, e eu achei interessante esta antítese de um rei, mas numa posição de falhanço ou de frustração, numa tentativa de levar uma situação a um extremo. Porque na realidade o álbum fala muito sobre incertezas, sobre o que é a ideia de falhar, a ideia de superação e é tudo um bocado o brincar com a carga das palavras e levar um bocadinho isto ao exagero. Porque não sequer há uma tradução ideal de Ruiner, porque há ruínas, sei lá, podes dizer ruínas, mas em português não dá bem para fazer esta tradução, mas é algo como o “Rei do Arruinado”. Eu estava a falar de hip hop, mas sempre fez sentido para mim não ter grandes barreiras na música e eu vou buscar inspiração às vezes a outros géneros musicais tanto em termos estéticos como de letras e por exemplo outro universo onde vou buscar esse imaginário mais poético é ao metal ou à música mais underground. E por exemplo nós temos letras como “Where beasts die”,  esta ideia de “onde as feras morrem”, há aqui um peso muito grande nas palavras e é essa a ideia.

Passaram cerca de oito anos entre o lançamento do último álbum e este novo e sei que nesse intervalo andaste a viajar um pouco por todo o mundo. Sentes que esse longo passeio se reflete no disco? 

Eu acho que o álbum está dotado de alguma universalidade ou alguma globalidade. Nós tivemos uma digressão este ano que começou no Japão e  íamos ter uma digressão na Europa, Estados Unidos por aí e, por exemplo, o ano passado nós terminámos num festival na Islândia. Eu posso tocar esta música praticamente em qualquer parte do mundo e há algo que as pessoas vão reconhecer e vão gostar e além disso acho que o álbum tem uma coisa que lhe tentei transmitir que é alguma modernidade, ou seja há aqui um processamento muito digital, uma espécie de levar as vozes ao extremo, uma mistura entre algo maquinal e algum com algo bastante orgânico e humano. Aprendes muito em digressão, eu já vivi fora, mas as digressões ensinam muito, no sentido em que passas por clubs, passas por espaços em que entras e ouves e dizes “uau isto é super interessante”, eu tive essa experiência no Japão como deves imaginar, mas também tens isso em Nova Iorque, por exemplo, tens sítios onde a Lady Gaga tocou e toca, e eu gosto dessa pop também, mas depois tens sítios super underground, onde tocam bandas que depois vais apanhar um dia em Paredes de Coura. Eu gosto desse misto, ou seja, nós temos coisas declaradamente pop e depois temos outras que fogem, distorcer um piano não algo que associarias a um álbum pop. Se era possível isto acontecer a partir de casa? Era, mas como diz aquela publicidade, não era a mesma coisa. Eu acho que em :papercutz e na música em geral eu gosto de contar histórias, e eu gosto que essas histórias estejam impregnadas de alguma realidade. Acho que faz sentido contar a história de um álbum, nós já tínhamos as músicas prontas e já tínhamos começado a tocá-las ao vivo ao longo destes anos, acho que faz sentido contar uma história que tem uma parte de ficção, claramente, mas há outra que é realmente vivida. A música ganha um apelo maior quando isso acontece. Eu podia dizer “eu ouvi este ou aquele, aquela banda neste sítio”, outra coisa é dizer-te “olha eu estive lá e vi estas bandas e vi estes projetos e naquela altura algo mudou coisa em mim”, porque a música muda sempre alguma coisa em ti.

Normalmente, como é que funciona o teu processo de criação? 

Houve uma fase em que eu estaria mais condicionado à ideia de que a escrita só pode acontecer em algumas fases, mas agora faço o contrário. Todos aqueles pequenos instintos, todas aquelas necessidades que tens, todas aquelas pequeninas ideias que vais na rua e vês alguma coisa interessante eu aponto hoje em dia, aponto muita coisa e gravo e digo “epá isto é uma boa ideia”. E quando eu vou atacar propriamente uma música eu vou a todos estes rascunhos que tenho e pego neles. A primeira coisa que faço é passar por esses rascunhos e depois sim começo a escrever a música.  Agora quando falas em conceito, isso demora mais algum tempo, definir o conceito de um trabalho é algo que é preciso ir maturando, não é uma coisa que tu digas eu vou fazer um álbum sobre x, não,  à medida que vais escrevendo o álbum ele também se vai revelando para ti e eu acho que isso é o que a música tem de interessante. Passei uma parte da minha vida como profissional, em Informática, e como deves imaginar é uma área bastante racional, formal e pragmática e eu acho isso interessante e ainda uso isso na música, mas a área artística e criativa tem todo este lado mais inesperado e tu tens que estar atento a estas pequenas ideias e à medida que vais estando atendo os conceitos começam a definir-se. O que eu sinto que se calhar consegui melhorar é perceber quando estou próximo do final. Isto aprendi a trabalhar com o Chris Coady, produtor do The Blur Between Us, que me mostrou que, imagina tens uma ideia, de duas uma: ou achas que a ideia não é boa ou se começas a mudar muito a ideia original não vais chegar a uma ideia melhor, vais chegar a uma outra ideia. A questão é essa tens que apostar na tua própria visão e quando começas a perceber que estás a pôr em causa tudo e mais alguma coisa lá está ou a colocas de lado ou então dizes não, isto é um caminho e há duzentos caminhos possíveis, e siga por aí. Isso tudo faz parte do processo de um álbum, principalmente num álbum em que que desempenho vários papéis.

Seguindo essa tua deixa final… Neste King Ruiner foste músico, compositor e produtor. É fácil para ti fazer a gestão dessas várias funções?

Claro que não é fácil! Tens de ser mãe, pai, filho, tudo ao mesmo tempo. Eu só fiz isso depois de passar alguns anos a tentar perceber qual era o papel de cada um. Eu tenho de sair do mindset de músico para me colocar na posição de produtor e isso só é possível pelos anos, pela experiência e de conseguir encurtar um caminho. Mas para isso também tens de ganhar confiança nas tuas várias vozes. O músico Bruno não tem de se preocupar com o público, ainda que isto soe um bocadinho Fernando Pessoa até. Mas a verdade é que enquanto músico eu escrevo as coisas para mim, o músico não tem de se preocupar com essas questões, o produtor tem. No início eu escrevo as coisas para mim e depois começo a pensar como produtor. No geral eu confio na minha visão, mas é claro que demora algum tempo até teres essa confiança.

Este King Ruiner podia perfeitamente ter saído de um filme (e sei que és cinéfilo)… Que narrativa é esta?

É claro o meu gosto pelo cinema e por bandas sonoras, aliás eu escrevi para cinema e é uma coisa que espero fazer. E como bem colocas, o álbum tem um narrativa e não é que isso não aconteça na música, mas muitas vezes um álbum são músicas desconexas, no King Ruiner nota-se que há uma ligação, um crescendo e isso é típico numa narrativa que associas normalmente ao cinema, sobretudo pelo próprio cinema já ser uma disciplina que inclui várias artes em si mesmo. No caso de um álbum tens a música, as letras, o artwork, os visuais. No cinema ainda mais elementos tens. Outras coisas que associas ao cinema, por exemplo o álbum tem intros, interlúdios, pequenas partes instrumentais, um fim bastante longo,  novamente esta ideia  de que há aqui uma história a ser construída com vários momentos. A primeira música define o tom dos primeiros temas, a “Halfway There”, eu tento que não seja totalmente claro, mas é basicamente uma situação em que há o encontro de duas visões, tens alguém cheio de incertezas sobre o caminho que está a traçar, se aquele é ou não o percurso certo e tens outra pessoa que diz que não há sequer outro caminho. O álbum descreve um bocado isto, começa num ponto de dúvidas e incertezas e depois vai-se transformando numa ideia de esperança ou de superação. E não podia ser mais apropriado tendo em conta os tempos que estamos a viver.

Pois, até porque o disco foi desenvolvido antes deste “período Covid”, mas o seu lançamento coincidiu com a pandemia. Como foi para ti, lançar este trabalho num período tão atípico? 

Falaste do interregno dos anos, mas na realidade ainda sai o single “Trust/Surrender” lá pelo meio. E é assim, o álbum ele estava gravado e havia coisas que já estavam feitas, e como :papercutz evoluiu para ser um projeto ao vivo, em vez de fazer aquilo que fiz no passado que era: escrevia um álbum depois ia pôr ao contexto ao vivo e depois havia um reformulação às vezes total, então decidi apresentá-lo ao vivo e deixar que esse processo me influenciasse no trabalho de produção, de alguns arranjos ou para limar às vezes algumas coisas, porque quando tens um papel criativo é muito difícil seres o teu próprio editor, então nesse sentido os concertos foram muito importantes. A história engraçada é que nós estivemos estes anos todos para lançar este trabalho, sempre a pensar quando é que fazia sentido parar aquilo que estávamos a fazer para nos dedicarmos a apresentar o álbum, conclusão quando é que o album é lançado? Em Março, que é a melhor altura de todo o sempre para ele ser lançado (risos)! Nós tínhamos uma digressão na Ásia (Japão, China e Taiwan) e os promotores de lá já me diziam que havia alguma coisa de errado no final de 2019. Eu acho que ouvi a primeira notícia da Organização Mundial de Saúde, e quando vi aquilo associei aos alertas que já estava a receber deles. Mesmo assim pensei que não ia afetar o lançamento do álbum, só a digressão, então tínhamos tudo preparado e isto acontece, também tive de me reinventar. O que é que isto representa? É que vais lançar um álbum a meio de uma pandemia. Portanto o esforço vai ser completamente diferente. Isto também me ensinou a aceitar alguma vulnerabilidade e se há algo positivo nesta pandemia é que quando as coisas se tornam difíceis, há aqui um instinto qualquer de sobrevivência que se ativa e eu tenho que arranjar soluções e é isso que tenho feito desde Março.

Voltando aqui à sétima arte, e se virmos videoclipes antigos de :papercutz é fácil perceber que já existia uma grande preocupação visual. Já estás a pensar em videoclipes para este disco?

A parte visual de :papercutz  é muito importante e as músicas carregam em si já esse peso. O realizador é uma pessoa que eu admiro muito, o Vasco Mendes, que é talvez um dos realizadores de videoclipes mais ativo em Portugal,  tem trabalhado com Best Youth, White Haus, uma série de projetos, mas nós tivemos uma série de dificuldades. Colocámos em nós um certo peso, imagina, o tema que nós escolhemos chama-se “Become Nothing” que é inspirado em Pessoa. Portanto, vamos lá ver, nós decidimos fazer um videoclipe sobre uma personagem que por si só já carrega um enorme peso. Na altura o realizador procurava atores e atrizes que não estavam disponíveis e os cenários também não estavam disponíveis, foram ficando aos poucos, mas mesmo assim não tem sido fácil. No entanto, estamos a completar o videoclipe para essa música, mas estamos a demorar porque o vídeo vai ter que ser uma peça que tenha alguma qualidade e seja bastante polivalente e que “chegue” a todo o lado. Não tem sido fácil nestes tempos, mas eu sinto que estas músicas merecem ser representadas com visuais interessantes. A narrativa visual é uma coisa que eu gosto muito e tem que ser algo à altura.

Quais são para ti as principais diferenças entre este teu novo trabalho e o seu antecessor? 

Eu acho que o Blur Between Us apesar de ter ali algo de underground, algo de Nova Iorque, tem alguma sujidade no som, mas é mais orgânico, pelo facto de ter uma orquestração clássica, que logo à partida muda um bocado as coisas, tinha violinos, sopros, um bocadinho de harpa, a percussão era mais orgânica, a voz era menos processada. Neste álbum não, é o contrário, tens uma instrumentação mais eletrónica, mais sintetizadores, mais caixa de ritmos, tens alguns elementos orgânicos que eu vou buscar a gravações para lhe dar um lado mais exótico, ou seja, elementos de coisas chinesas, pratos orientais, mas no geral, ele é muito mais sintético e mecânico. Sobretudo pelas vozes, nota-se que as vozes são muito mais processadas, mas isso foi uma coisa propositada. Na edição japonesa tens mais uma música, mas ao longo do álbum tens um tema que se repete (“Choral, Choir e Chorus” na japonesa), esta ideia da força da voz, que é algo que que vou buscar um bocadinho à tradição africana, a ideia dos coros, as pessoas a cantarem e a expressarem uma ideia de força e vitalidade e eu tentei transpor isso, eu pego numa voz apenas e processo digitalmente de forma a que se torne num coro. Se calhar no álbum anterior eu pensava em gravar um coro mesmo para parecer uma coisa mais humana e mais orgânica, no King Ruiner não, pensei vamos manter isto no domínio digital e então eu vou processar estas vozes todas vai sair com uma linguagem mais moderna do que se fosse feito de outra forma. Ao vivo tenho mantido a lógica, mas também tenho convidado mais cantoras para interpretar as várias vozes que estão presentes no álbum. Este trabalho foi desenhado para ser apresentado por exemplo em clubs, sítios fechados, música alta, não implica dança mas permite que as pessoas se movimentem um pouco e portanto com tudo isto a acontecer eu tive que me reinventar. Imagina se estás a ouvir numas colunas, um som forte e agressivo com x vozes processadas digitalmente tu vais dizer isto soa-me bem, outra coisa é quando estás a tocar em pequenos contextos, por exemplo quando fomos tocar ao Village, e essa parte eletrónica se calhar vai soar um bocado estranha, não faz sentido estar ali a criar uma máquina de som digital quando na realidade as pessoas estão ao nosso lado. Então eu convidei outras pessoas para virem fazer diversas vozes, mantendo esta ideia de coro, e este coro é muito feminino, é muito a ideia das vozes femininas, mantendo esta ideia de coro, só que transposto para uma realidade ao vivo.

Desde o início deste projeto que se sente este peso da voz feminina. Qual é a tua relação com o timbre feminino? 

Eu acho que isso cada vez mais vai tornar-se claro, aliás tenho um projeto para 2021 em que quero convidar mais cantoras, ter mais timbres de voz. O álbum conta com as vozes da Catarina, Lia e Ferri que estão todas fora de Portugal e nas versões ao vivo eu queria pessoas que estivessem cá, que dominassem o inglês, e se conseguissem adaptar ao projeto, que tivessem uma experiência já de palco. E como estávamos agora a explorar o mercado nacional, fez todo o sentido ver o que estava a ser feito por cá e daí surgiram as colaborações ao vivo com a Shannon, com a Mema e Meta. Voltando à tua questão, porquê a voz feminina? É mais dinâmica, muito mais dinâmica que uma voz masculina, aliás as minhas vozes masculinas favoritas são até o contrário, até mais limitadas, vozes de crooner, vozes graves, mas no caso de :papercutz é preciso uma voz dinâmica, uma voz que se adapte a diversos registos, uma voz às vezes harmónica e outras vezes uma bocadinho agressiva e a voz feminina tem isso tudo. É, sem sombra de dúvidas, a voz mais rica que podes encontrar. E depois nesta parte mais etérea e interpretativa acho que nada se compara ao trabalho de uma mulher, sendo que eu estou a trabalhar com produtoras e a vantagem disso é que elas sabem bem trabalhar a voz consoante aquilo que o tema pede, porque já fazem esse trabalho com os projetos delas. Para além de tudo isto, eu sinto que aprendo imenso a trabalhar com mulheres.

Pelas tuas experiências de digressão, sentes-te um mensageiro além fronteiras de Portugal e de tudo o que de bom se faz neste cantinho?

Já me colocaram essa pergunta de outra forma: Se eu tive entraves na música querendo uma carreira internacional, sendo de Portugal? E a resposta é sim, claro. Porque um promotor nos Estados Unidos não acompanha propriamente o que se passa em Portugal, durante muito tempo as pessoas fora de Portugal não levavam muito a sério aquilo que eu fazia no sentido em que se questionavam: vou contratar este grupo de um sítio que nem conheço bem, com um mercado que nem sei como funciona, nem sei se têm experiência ou não e tu tens de ir construindo isso… Agora, as coisas mudaram, com o tempo a internacionalização tornou-se uma realidade para os músicos portugueses, tenho vários amigos e colegas portugueses, que aliás participaram neste novo trabalho, como os Octa Push, Throes and The Shine e o IVVO. São todos projetos que têm um grande lugar fora de Portugal e portanto nesse sentido sim, penso que sim, que eu e os meus colegas, passamos a mensagem de que há boa música a ser feita por cá e aliás até os próprios festivais apostam nessa ideia, até comitivas portuguesas. Participámos em alguns festivais internacionais, como por exemplo o Eurosonic, onde Portugal esteve representado como país convidado em termos de exportação de música. E todos os projetos que por lá passaram tinham e têm capacidade de internacionalização: Sensible Soccers, Octa Push, Throes and the Shine… Alguns até longe destes géneros, como por exemplo, alguém que eu muito admiro, que é o Rodrigo Leão. Também esteve lá e o concerto foi fantástico e nós estávamos todos lá a dar uma boa imagem da música portuguesa. Se neste momento as pessoas continuam a ver a música feita cá da mesma forma? A resposta é claro que não.

A crítica tem elogiado este teu novo disco. Como achas que o público o está a receber?

Eu acho que estamos melhor, bastante melhor. Nós começámos a tentar apresentar o projeto, mas tinha coisas que eu sentia que não faziam muito sentido, tipo coisas muito rápidas, então em pensei que tínhamos de nos adaptar e pensar que alinhamento fazia mais sentido tendo em conta o local e acho que fomos melhorando, aliás nós crescemos, eu comecei a convidar outros músicos. Nós soubemos adaptar-nos e nesse sentido acho que os concertos estão cada vez melhores. Temos ainda alguns concertos este ano, mas vamos voltar a arrancar de novo em 2021 e espero que aí as pessoas possam encontrar :papercutz em duas ou três posições ótimas: Uma – com vários elementos convidados, desde percussão, bateria, guitarra, além da parte eletrónica; segunda – com uma força maior nas vozes, ou seja: eu, a Shannon, a Sofia (Mema), Mariana (Meta), mais numa ideia tipo eletrónica-vozes; e ainda outra – eu e a Shannon, em espaços mais pequenos, porque aí não faz sentido andar com muita gente. Nós vamos trabalhar nessas três perspetivas, mas foi preciso, lá está, não ficar preso a um conceito, acho que isso é um erro que já cometi no passado, mas que agora não cometemos. Quando vais a festivais começas a aprender que tens de te adaptar aos sítios onde vais tocar. 

Mas as surpresas não são exclusivas dos concertos… 

O King Ruiner Deluxe tem um tema novo que é com a Shannon, o “Second Days, que saiu recentemente no bandcamp e agora vai para todas as outras plataformas. E ainda vai sair mais uma pequena edição até ao fim do ano, isto porque temos estado a tocar ao vivo o tema “Do outro lado do espelho” do primeiro álbum, Lylac. Isto surgiu por causa de um convite que eu fiz à Sofia (Mema) e gostámos tanto do resultado que vamos editar um single com dois temas, um muito eletrónico e tem um outro em que o cinema vem novamente ao de cima, porque estou a trabalhar com outra pessoa que é o Bruno que tem trabalho também em curtas, em arranjos clássicos, publicidade… Temos projetos pensados para 2021, como por exemplo uma banda sonora, mas não posso adiantar muito, porque é um projeto que está, inclusive, para ser apoiado pelo ICA, espero mais tarde poder dizer qual é o filme mas enquanto estamos para arrancar nesse projeto, o Bruno ouviu a “Do Outro lado Do Espelho” e disse: eu quero fazer um arranjo para isto e fez arranjos clássicos. Ficou bastante cinemático, tem cordas, tem sopros e são esses dois lados e esta versão vai sair no fim de Novembro. Pensámos em colocar os temas em mais rádios para além das rádios portuguesas onde já passaram algumas remisturas…

Quanto às de remisturas…Porque é que sentiste a necessidade de fazer uma versão alargada do álbum em que artistas portugueses como Throes and the Shine, Octa Push, Ivvvo, entre outros, remisturaram temas deste novo álbum? 

Nós estávamos no meio de uma pandemia, em que sabíamos que não seria fácil colocar todos estes músicos a trabalhar juntos, como é óbvio nem toda a gente tinha vontade ou podia ir a estúdio nesta altura. Qual é a ideia maluca no meio disto tudo?  Eu pensei, vou arrancar com isto e vou conseguir que eles façam isto em um, dois meses… Ao telefone, a rever, a olhar para aquilo. E se eu acho que o trabalho de :papercutz nos próximos meses vai passar por Portugal, então eu quero criar essa história em Portugal. Sem grande nostalgia, olhei para o passado e pensei nos grupos que fizeram parte do projeto até ao momento, e já nos tínhamos cruzado com a maioria destes projetos, então a ideia era criar mais pontes de ligação. Decidi criar a edição e mais tarde isso levou aos concertos. Foi o que aconteceu no CCB e no CCOP. A ideia é ir buscar estes pequenos pontos de encontro com outros projetos que nós temos em Portugal, porque nós estamos a fazer isto cá. Tal como faz sentido se calhar as pessoas perceberem que têm de ir aos concertos e que o lineup vai ser praticamente só bandas portuguesas e não tem mal nenhum e que mais tarde podem voltar a consumir artistas estrangeiros, como eu faço. E acho que faz todo o sentido as bandas começarem a criar estas ligações com outros colegas do meio.

É relativamente conhecido o teu interesse por psicologia e este teu novo trabalho parece criar uma espécie de dicotomia entre o indivíduo e a próprio individualismo da sociedade atual (pelo recurso ao auto tune e vocoder, algo mais mecânico) e o coletivo, o grupo (o coro, com várias camadas de vozes, algo mais orgânico). Isto foi intencional?

Como é que tu transmites através da música a noção de esperança? Na música folk africana, uma coisa que começas logo a perceber é esta sobreposição de vozes que tem um sentido melódico, mas ele está muito inerente à ideia humana de força, de vontade de superação. É uma carga humana que está ali representada. Aliás, até mais do que isso, porque estes coros africanos deram origem ao gospel portanto toda a música que está associada à ideia de religião, até de uma espécie de “higher calling” como dizem os americanos. A verdade é que a música faz, sobretudo em algumas regiões do mundo, muito parte da banda sonora desta espiritualidade e tens lá os coros, e tens lá esta característica que nem são coros clássicos super afinados, isto é, até têm uma certa desafinação e eu tentei transpor isso para o álbum de uma forma ou orgânica ou digital, como dizes. O elemento coral é precisamente isso, representar a força humana. Mas, lá está, a música é uma linguagem muito própria. Eu penso muito que é preciso algum cuidado para não pôr demasiados conceitos numa caixa, numa linguagem que por si só já é própria. As coisas no fim de contas têm de servir a música e não a ideia ou o conceito. E isso era algo em que eu tinha problemas, nomeadamente isso nota-se um bocado, acho eu, no primeiro álbum. Este tentar colocar lá muitas ideias e que as pessoas percebam isso, muita coisa, e neste não, sentes que é mais natural, mais orgânico.

E quanto às tuas influências musicais…

Eu realmente gosto de muitos géneros musicais. Mais do que a banda ou o projeto, eu gosto de produtores. Eu gosto de pessoas que têm uma voz própria, que tragam algo um pouco diferente e que tu sintas que aquilo é o seu universo e nesse sentido acho que gosto muito mais de projetos de uma pessoa só do que de bandas. Eu revejo-me mais naquela pessoa que intelectualiza e depois consegue transportar isso para a música. Há coisas que tu vês ou ouves e dizes logo isto é daquela pessoa e é isso que eu procuro na música, são esses gesto de identidade, independentemente do estilo.

Numa entrevista tua, falaste sobre The Cure e da importância que o Disintegration teve para ti enquanto músico. Em The Blur Between Us sentia-se mais essa influência. Este disco parece ter um lado menos negro, talvez mais dividido entre uma certa frustração ou melancolia e simultaneamente uma certa alegria e evasão. Mais dançável também. Sentes isso deste novo disco?

Sim, sem dúvida. O lado negro no último album era mais gótico e este é mais R&B, é mais sensual, acho que tem ali uma presença feminina mais forte e acho que isso é uma coisa boa. Também faz sentido, as letras falam de uma certa relação e depois as vocalistas também interpretam isso e fazem muito esse trabalho. Quanto a The Cure, eu nem os conhecia bem na altura, demorei um bocado a perceber o que eles tinham de especial e depois quando o Chris Coady me mostra o Disintegration e disse que tinha coisas parecidas com o estava a tentar exprimir no The Blur Between Us. Ouvi-o e aí percebi que era um álbum quase perfeito, não mudava nada, consegue ser bonito e negro ao mesmo tempo, tem uma carga emocional muito forte. A parte eletrónica, mais dançável vem dos concertos ao vivo vem da ideia de como nós queríamos que este álbum fosse apresentado. Ele é mais eufórico, tens temas muito rápidos e dançáveis até, e a parte eletrónica acho que é uma coisa que vamos introduzindo cada vez mais. Se eu acho que um pertencia a um ambiente noturno de algum peso, o ambiente noturno deste é diferente, é mais misterioso, sensual, às vezes, tem aqui uns tons quaisquer que o atravessam e que são as vocalistas que o colocam lá. Claro que pensei que isso podia acontecer e lá está, isso acontece em muitos dos projetos que eu gosto. Acontece em Fka Twigs, Banks, por exemplo a Grimes até e eu a Grimes até temos uma coisa que é  parecida, que é, se é preciso meter uma coisa gótica, se é preciso meter metal e ela aí vai muito mais ao extremo do que eu, porque se quiser, mete uma coisa country por exemplo. Mas sim, acho que isso é algo que é semelhante na identidade de Grimes e de :papercutz, é isto que nós partilhamos um bocado, esta possiblidade de ir buscar a diferentes géneros ou influências, mesmo até dentro da eletrónica, tens mil variações e eu gosto de explorar isso. Por exemplo, já me disseram que a “Become Nothing” faz lembrar, por causa do tempo, um bocadinho Massive Attack, e, por exemplo, a cena é que em :papercutz podes encontrar batidas quase afro club como tens na “Halcyon”, com batidas, com polirritmos, ou então tens uma coisa como a “Become Nothing” que faz lembrar trip hop. E a ideia é não estar agarrado. E acho que de futuro, :papercutz vai ser um bocadinho assim, agora que tenho essa liberdade, faz sentido que assim seja.

 

Como vês :papercutz no futuro?

Vamos continuar a dar os concertos que temos previstos para este ano, mas estamos muito dependentes de tudo o que está a acontecer, relativamente à pandemia porque está a mexer muito com a atividade cultural. Esta indecisão pesa muito neste momento para os músicos e artistas. A minha ideia é tornar-me cada vez mais produtor e, inclusive, desenvolver atividades dentro do cinema e teatro, audiovisual, mas não necessariamente em Portugal. Não ficar preso à ideia de álbum-concerto-álbum-concerto, este ciclo repetitivo. Eu quero trabalhar em coisas novas também.

Neste disco tens alguma música preferida? Existe aqui alguma filha predileta neste trabalho?

Não tenho bem músicas preferidas, mas tive algumas surpresas, por exemplo que a “Halfway There” passasse na rádio, também não esperava que as pessoas gostassem tanto da “Become Nothing”, Ah espera, tenho uma, que não é bem preferida, mas que para mim é especial, a “Loose Ends”. É o tema que a Ferri canta, começo a ouvir aquilo e por vezes parece que nem é meu, mais estrangeiro que aquilo não dá, depois faz-me lembrar imenso anime, a voz, a forma como ela canta, de uma forma bastante sussurrada. E é um dos pontos mais exóticos do álbum. Tinha dúvidas se ia funcionar ou não, mas acho que funciona. E, lá está, é uma coisa completamente nova, que não existia em nenhum trabalho meu ainda, tinha temas em português e inglês, mas cantados em japonês não.

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