A música pop é a arte do efémero: espuma encantadora que nos deslumbra no momento mas que rápido se desfaz nas mãos dos dias que passam. De vez em quando, porém, surgem objectos assim, intemporais, imunes à erosão do tempo, vindos ninguém sabe de onde. Pink Moon, terceiro e último disco de Nick Drake, é um desses estranhos objectos. Quis o acaso que este disco tivesse sido gravado em 1972; mas, com excepção da capa visivelmente nascida ainda da ressaca do psicadelismo, ficamos com a sensação que este disco poderia ter sido gravado em qualquer década. Contudo, dada a melancolia e sofisticação literária das suas letras, se fôssemos forçados a situá-lo num determinado tempo, teríamos que reconhecer que está mais próximo da sensibilidade estética dos poetas românticos ingleses do início do século XIX do que das referências pop dos anos 60 e 70. Nick Drake deve mais a Keats e a Shelley do que aos Beatles e aos Stones. Talvez por isso muito poucos o tenham compreendido no seu tempo. Antes de morrer aos 26 anos com uma overdose de antidepressivos, Pink Moon vendeu umas míseras 4500 cópias. Como previu no “Fruit Tree” do seu primeiro álbum (Five Years Left), “a fama é uma árvore de fruto que só pode florescer depois de estar semeada debaixo da terra”.
E de onde vem então essa intemporalidade? Em grande parte da sua produção despojada. O génio da produção de Pink Moon é não ter produção alguma. Desiludido com o excesso de orquestração do seu disco anterior (Bryter Layter), Drake limitou-se desta vez a gravar o álbum sozinho, só voz e guitarra, numa única pista, e, muitas vezes, ao primeiro take. Esta opção cria uma intimidade nunca atingida nos álbuns anteriores. A sensação que temos é a de entrarmos pelo seu apartamento de Londres adentro, não havendo qualquer barreira de segurança entre o seu sofrimento pessoal e a nossa intrusão (mais tarde, Elliott Smith, talvez o seu mais brilhante “herdeiro” artístico, também seguiu este perigoso caminho de uma exposição pessoal excessiva e imprudente). Um único overdub foi acrescentado à primeira canção (a faixa que dá nome ao álbum), uma comovente linha de piano tocada também pelo próprio, que nos faz perguntar como raio é possível tão poucas notas darem a origem a uma beleza tão incrível e comovente.
Esta depuração no fazer do disco foi uma escolha acertada: a orquestração dos discos anteriores (mais comedida, ainda assim, no Fives Leaves Left) era sempre redundante face à expressividade e beleza intrínsecas da voz e guitarra de Drake. Em Pink Moon o ouvinte não é mais distraído pela pistas supérfluas dadas pelos arranjos, podendo assim concentrar-se no essencial: o magnífico dedilhar da sua guitarra e o timbre suave da sua voz. E em ambos os “instrumentos” Drake deixou a sua marca. Nick não se limitou a tocar guitarra com talento, tocou-a também como ninguém antes, de uma forma quase inimitável. Drake ficava horas fechado no seu quarto a inventar novas afinações para dar uma tonalidade única a cada uma das suas canções, e é ainda hoje um complicado quebra-cabeças para qualquer guitarrista experiente tentar descobrir quais elas são. Na voz foi igualmente pioneiro. Ninguém antes dele cantava folk de uma forma tão económica. Nick Drake está para a folk-pop anglo-saxónica como o João Gilberto antes esteve para a música popular brasileira. A influência deste registo vocal low-profile está bem patente em artistas posteriores como o americano Elliott Smith, os britânicos Belle & Sebastian e Scott Matthews.
Vamos agora às canções, a maioria muito parecida entre si na forma, conferindo uma coesão estética ao álbum: quase sempre aquele colorido dedilhado de guitarra, puro e ancestral, como um fio de água a correr da nascente. Dois temas têm, contudo, um registo diferente: “Horn”, um instrumental com uma melodia triste e esparsa; e “Know” com um riff de guitarra ostensivamente simples. Ambas parecem cumprir uma função de pausa Kit Kat: um breve descanso para podermos mergulhar de novo na complexidade dos seus arpejos (as suas harmonias são, de facto, tão ricas, que muitas das canções do álbum não têm refrão e não sentimos sequer a sua falta).
“Pink Moon”, na qualidade da canção que abre e dá o nome ao álbum, dá o tom sombrio mas distanciado a todo o conjunto: “Pink moon gonna get you all” pode ser uma metáfora de morte, mas o facto de uma lua cor-de-rosa representar tal função foge ao lugar comum e atenua o seu aspecto dramático. Talvez por isso a Volkswagen tenha ousado a blasfémia de utilizar em 1999 esta canção para um anúncio televisivo a um descapotável. O facto de um artista de culto, sensível e desadaptado, ter saído da obscuridade graças a uma publicidade a um cabriolet é de uma ironia profundamente amarga.
“Place To Be” fala-nos da perda da inocência, do contraste entre um passado paradisíaco porque inocente e o presente desolador porque consciente. Como bom poeta romântico fora do tempo que Drake era, recorre sempre à natureza para expressar os seus estados de espírito: “I was green / greener than the hill / now I’m darker than the deepest sea”. Este seu deslumbramento pela natureza faz parte do seu DNA poético: não só atravessa todo o álbum, como perpassa os seus dois discos anteriores.
“Which Will” volta a um tema já abordado no “One Of These Things First” do álbum anterior: submergido num leque demasiado vasto de escolhas que se tem de fazer a cada momento, surge uma sensação de paralisia que redunda em nada escolher.
“Things Behind The Sun” é um dos pontos altos do disco: a progressão de acordes do início da canção para o refrão é de uma beleza assombrosa. A poesia estabelece de novo um contraste vincado, desta vez entre a pressão colectiva para a respeitabilidade social e a autenticidade do indivíduo. Nick Drake é aqui profundamente pessimista. Não abdicando da sua singularidade, mas não tendo forças para combater “aqueles que nos olham”, só lhe resta desistir e ser esmagado pela corrente.
“Know” reflecte a sua incapacidade de estabelecer contactos com os outros: “Know, that I love you / know I’m not there.”. Nick volta a este tema no “Free Ride”, desta vez com um refrão meio bluesy.
“Parasite” é o momento mais desesperado do álbum: talvez não tenha sido por acaso que os Radiohead lhe roubaram os acordes para o seu “Subterranean Homesick Alien”. Estamos aqui já no campo da auto-destrutividade pura: “Take a look you may see me on the ground / for I am the parasite of this town”. A progressão “flamenco” do refrão acentua esse lado sombrio.
“Harvest Breed” é uma nova metáfora de morte, mas, ao contrário da canção anterior, já não aqui revolta mas sim uma serena aceitação. É assim preparado o terreno para o “From The Morning”, a canção mais luminosa do álbum e uma das mais bonitas da sua discografia. Nick deslumbra-se com a beleza profunda que há em todas as coisas: “Day once dawned, and it was beautiful/a doy once dawned from the ground”. Contudo, dada a ambiência sombria que percorre todo o álbum, é difícil de interpretar a canção de outra forma que não a de alguém que sabe que está prestes a morrer e que contempla serenamente a beleza do seu último dia. Nick pode ter morrido apenas em 1974, mas o seu testamento artístico foi feito dois anos antes com este maravilhoso Pink Moon.
Um disco, portanto, obrigatório. Uma colecção de discos sem ele é um amontoado aleatório de círculos. Comprem-no. Spotify é batota.