Custa a perceber como é que a música é tantas vezes engolida e feita em marioneta por uma indústria enlouquecida pelo rendimento astronómico (Thurston Moore bem perguntava à juventude o que fazer quando a cultura popular é monopolizada pelo negócio), quando Nick Drake lançou em altura certeira a validação necessária e um compromisso maior. No seu álbum mais polido, conglomeram arranjos emprestados a uma cultura musical que pode pecar por muito menos pela falta de diversidade. O choro das seis cordas que ouvíamos em Five Leaves Left passava a ser embrenhado numa polifonia que repescava instrumentos de sopro, metais, mais cordas e coros, materializando uma fluída mistura heterogénea que bem se esforçava por iluminar territórios bastante escurecidos.
São inseguranças, mas também são odes, e também são retratos tirados a metrónomo à imagética de Chirico ou aos raios de sol que pontualmente rompem as nuvens num dia cinzento. Primeira chegada à estação em “At the Chime of a City Clock”, uma desolação urbana em constante mutação e um tour-de-force: saxofone e cordas que invadem um cenário solitário. E é noite, quase podemos tocar no negrume, quando se levanta esta poeira timidamente: procura-se alguma coisa neste ritmo de coisas que vão e voltam e não deixam mácula. É ele que espera o comboio, pois claro, mas talvez este já nem venha hoje; quem não espera é uma cidade mal-iluminada que absorveu os seus pares.
As teclas pairam no espaço e pintam uma composição solarenga mas não menos dorida em conteúdo em “One of These Things First”. E tantas eram as coisas que Nick Drake poderia ter sido, não fosse o inesperado desfecho de uma carreira que se avizinhava brilhante. Um emaranhado de referências mundanas que pautam uma profunda indecisão – uma infinidade de cenários por habitar que desvanecem tão depressa quanto se formam. Poucos terão sido os artistas desde então a compor uma ode tão fidedigna à chegada à idade adulta; aqui, sob um fundo tão simultaneamente primaveril e intimista.
Pois que por detrás desta polifonia paira sempre uma névoa, uma fugaz assombração que se apresenta ora amarga, ora doce. Maior exemplo será a dicotomia de “Hazey Jane”, primeiro distante e depois próxima: esta misteriosa figura que vai assombrando os dias, que ora é idílica, ora é mundana, mas quase nunca tangível. Mudam a abordagem e o tom mas, novamente, persiste a memória. Pois que a memória é que é mutável: correm os dias e lá vai ela noutro invólucro, onde a realidade já não coexiste. Lamentos maiores se levantam em “Fly”: é Drake ajoelhado numa crescente epopeia, talvez numa das mais urgentes ânsias – mas, claro, a figura não muda e espairece na atmosfera.
E onde iríamos voltar a encontrar Drake, o músico virtuoso e inconformado, senão pedindo uns trocos envolto em amarguras passadas: “Poor Boy”, filho da bossa-nova e do soul, entre cromatismos e coros femininos. Não tínhamos previsto estes coros, mas como poderíamos prever o que se avizinhava quando é o processo que abre o caminho? Quase podemos dizer que nem o próprio Drake terá previsto a inflexão, absorto em exorcizar os seus fantasmas por entre o dedilhado.
É sempre a estrela do norte que traz a redenção – não vale a pena nestas altura envolvermo-nos em sacramentos, mas terá sido por aí – e é ela o degrau final do caminho em “Northern Sky” (a última pedra vem mais em jeito de epílogo). Drake cansou-se de esperar mas lá veio a resposta quase divina a atender às preces. Esta que, sim, não é falsamente ensolarada: é facilmente a faixa mais iluminada do curto percurso de um músico que abriu, não só os seus, como os nossos horizontes – quantos mais o fizeram desta forma?
Sem grandes histórias, ou este é um dos produtos maiores da música contemporânea, ou então somos nós que não sabemos ouvir música.