Ao quinto álbum, Nick Cave atinge a sua maturidade criativa, sintetizando a dissonância do seu passado pós-punk com um melodismo até então inédito. As más sementes teimando em brotar.
Em 1987, Nick Cave e seus compinchas dos Bad Seeds viviam em Berlim ocidental, encantados com a sua atmosfera artística e dissoluta. Na sua canção “The City of Refuge”, Nick presta homenagem à cidade que o acolheu, elogiando, não os seus poderes redentores (sempre fora demasiado pessimista para acreditar em tal coisa), mas o requinte com que oferece a perdição. Cave não se importava de se destruir com o veneno da heroína; com uma condição: que tudo acontecesse com o glamour dos cabarets berlinenses como pano de fundo. Decadência, sim; mas cuidando da sua estética. Não fora sempre esse o lema de Nicholas Edward Cave?
Como é que no auge dos seus consumos Nick conseguia ser actor em “Ghosts… of the Civil Dead”, músico em Tender Prey e romancista em “And the Ass Saw the Angel”, nunca ninguém percebeu muito bem; já era um milagre conseguir manter-se de pé. O que é certo é que Cave vivia um dos seus maiores picos criativos. No estúdio exíguo onde vivia, cujas paredes estavam decoradas com uma estranha mistura de arte religiosa com pornografia vintage, Nick descarregava o seu romance na máquina de escrever; os dedos matraqueando de noite e de dia, movidos à gasolina das anfetaminas. Muito do imaginário gótico e sulista deste seu primeiro romance transbordou para Tender Prey: o mesmo gosto pelo grotesco e pela violência, as mesmas obsessões bíblicas, o mesmo sentido de humor negro e retorcido.
Tender Prey é um disco de transição, com um pé no seu passado musical, e o outro no futuro. Das obras anteriores mantém a estranheza gótica e uma reinvenção demente do blues (onde a mitologia do sul profundo tem muito mais importância do que uma fidelidade estritamente musical). É rejeitada, contudo, a dissonância pura e dura, em favor de uma abordagem mais doce e melódica. Ainda estamos longe do intimismo de The Boatman’s Call, mas algumas das sua baladas (como a voyeurista “Watching Alice” e a fumarenta “Slowly Goes the Night”) apontam o caminho para lá.
Cave desejava libertar-se da imagem de enfant terrible do pós-punk, para ver reconhecidos os seus talentos de songwriter. Nos seus três primeiros discos, Nick começara já a aproximação ao universo dos “escritores de canções”, através de versões de temas dos seus mentores (“Avalanche” do Cohen, no primeiro álbum; “Wanted Man” do Dylan, no segundo disco; um lote inteiro de versões de clássicos, em Kicking Against the Pricks). Agora, ao quinto capítulo, Cave dava o passo lógico seguinte, compondo ele próprio temas inseridos nesta tradição. Com o génio de “The Mercy Seat”, media-se finalmente com os seus mestres.
Toda a gente sabe que a Austrália tem dois bichos bizarros: o ornitorrinco e Nick Cave. Convoquemos agora ambos. A grandeza de Tender Prey é justamente ser esse disco-ornitorrinco: metade noise rock, metade doce melodia. From Her to Eternity pode ser brilhante, mas a sua permanente tensão e violência acaba por nos fatigar. The Boatman’s Call será com certeza uma obra-prima, mas com todo aquele langor ao piano é impossível não bocejarmos de vez em quando. Tender Prey, no seu justo meio, é um álbum que nunca cansa. Para ouvir em loop, uma e outra vez: “and I’m not afraid to die”…