Nick Cave! O movimento de uma sala cessa e a atenção dos que conversam é de súbito desviada. Proferir este nome requer um motivo, não pode ser dito em vão, muito à semelhança de Deus. Retifico, é até mais grave. Toda a gente diz Deus. Deus… não passa de um nome que, pairando, já não para sala alguma, já nem requer explicação. Agora, Nick Cave, um Wild God… É de se ficar ofendido se for dito assim para o ar.
Já não temos o Cave do passado, é impossível recriar concertos para vinte pessoas em pequenos bares, sermos consumidos por uma atmosfera semelhante à de uma caverna do neolítico. No entanto, podemos esperar algo muito semelhante à sua última vinda a Portugal. Sugestão: comprem bilhetes sentados. É tudo muito giro andar aos pinotes ao som do clássico “Mercy Seat” ou ao crescendo de “Jubilee Street”, mas, apesar dos cantores de gospel que se faz acompanhar, a missa da “black church” não é só música frenética. Também tem os seus momentos de sentar, parar e ouvir o sermão. E lamento dizê-lo, mas o sermão pode ser difícil, particularmente para as pernas. Há que estar no espaço e conforto certo para nele nos emaranharmos e não ao lado de um tipo suado a tresandar a cerveja.
É desconcertante pensar que, outrora, Nick Cave fora só mais um nome na cena underground de Berlim. Quando não estava a construir desenfreadamente uma torre babilônica e infinda de poemas, estava a declamá-los num qualquer clube gótico para meia dúzia de gatos pingados. Pura liberdade. Nem a lepra o podia impedir de criar. As suas exibições juntamente com os Boys Next Door e, posteriormente, Birthday Party eram brutais, nos dois sentidos da palavra. Os espectadores eram levados para uma exibição bizarra, onde um corpo vertia emoção por de todos os lados, sem escrúpulos, numa dança que só ele a sabia sentir. O resto da banda proporcionava-lhe o plano de fundo certo: barulho. Caótico em essência, porém organizado. Fraturadas ondas de uma falta de educação colorida e saborosa. Era um preto e branco teatro de horror. Muitos acompanhavam Cave na sua transe lírica e no seu espernear estatelado no chão. Outros levavam com uma biqueira na cabeça.

De repente, a partir de meados da década de 80, as suas composições começaram a ganhar um novo impacto. Cada vez mais refinadas e próximas da canção popular, eram já alvo da indústria musical. A banda separou-se e Cave plantou as sementes de uma nova: Nick Cave and The Bad Seeds. Um nome que, para além de transparecer mais assumidamente o seu protagonismo, iniciava, de certa maneira, o culto pela personagem NICK CAVE. Agora destituída de si, num ato de reconhecimento e respeito próprio. Ainda que muito preso ao som industrial e difícil que tanto marcou os seus primeiros projetos, Cave experimentava subtilmente outros caminhos. Aos poucos, a silhueta de um jovem revoltado, que para a criação artística bebia somente do caudal ininterrupto da sua raiva, foi-se perdendo nas longínquas terras da memória.
Ao longo dos anos, foi construindo um vasto legado, em que cada álbum emula cristalino um sentimento datado, um fiel recorte emocional de Cave em cada ano. Em A Boatman’s Call, por exemplo, está patente a angústia resultante da sua separação com PJ Harvey. Ou o mais recente Ghosteen, que recorda Cave em fase de luto após a morte de um filho. Um álbum que racionaliza esse inefável sofrimento e talvez tenha, dentro da permanência dessa imperecível cicatriz, ajudado Cave a libertar-se do mesmo.
Há um certo estremecer, uma perturbação na alma, quando se entra num quarto vazio. O conceito “sozinho” não passa de um paranóico estado de mente. Onde, no seu crescer neurótico, a palavra se torna tênue como um fantasma. Existe, de facto, um período sombrio associado a Cave, período esse não mencionado ao risco de se tornar ad nauseam.
Hoje, com sessenta e cinco anos, Cave é um artista que enche estádios tanto com pais como com filhos. O espectro etário tem-se alargado graças à fiel passagem da “palavra sagrada” de geração em geração e esperemos que assim continue até que, num futuro longínquo da raça humana, em Marte estará alguém a assobiar “Red Right Hand”.
Os concertos de Cave deixaram de ser uma mera exposição musical em muito carnal e tornaram-se verdadeiros espetáculos, com recurso a numerosos membros e a uma apresentação mais estéril e brilhante. Cave já não anda entre nós, mas eleva o seu estatuto a palcos de 2 metros de altura. Um outrora confrontado e confrontador, assume papel e destaque de venerado.
Como qualquer Deus ou figura divina, Cave tem os seus “assessores”, anjos, profetas. Ao longo do tempo, como uma religião mais antiga que o conceito de calendário, os elementos fulcrais que promovem o texto divino vão-se alterando. De alguma forma a sinistralidade de Mick Harvey (Birthday Party) e a frontalidade fria e metálica do alemão Blixa Bargeld (Einstürzende Neubauten) tiveram que se metamorfosear num barbudo violinista que anda por aí com o nome de Warren Ellis.

Este membro-fundador da banda experimental australiana Dirty Three tem trazido às criações de Nick novos sabores. É um músico talentoso que não se fecha na confortável proficiência do violino e também chega a contribuir sentado ao teclado e pontualmente na guitarra elétrica, sempre no seu estilo atmosférico muito distinto. Mas, por mais que custe dizer isto, há qualquer elemento que falta naquela elétrica guedelha rala. A componente energética encontra-se lá, com os sentidos apurados, mas há um calafrio muito particular na parte traseira da nuca de qualquer um que apenas surge em situações muito especiais. De certo modo, ver o Live at The Paradiso (1992) traz uma desinibição animal crua, um conectar com a natureza e emocional do ser humano, e de cada um de nós. Warren mesmo tendo os seus momentos frenéticos, em que, de facto, se levanta da sua amiga cadeira, tende a proporcionar uma complacente névoa de dissonância fantasmagórica, em vez da explosão desinibida dos anteriores braços-direitos de Cave.
Ainda assim, vale cada cêntimo ir vê-lo ao vivo. Não podemos pedir a Cave que seja algo que já deixou de ser há muito tempo. Músicas como “Stagger Lee” ou “Jack The Ripper” dificilmente farão parte do alinhamento. Também a idade, mas sobretudo todo o sofrimento que atravessou a sua vida recentemente enterraram um Nick Cave que não voltará. Ao passo que havia plantado sementes para a sua nova banda, alguma entidade o plantou no subsolo. De certa forma, cresceu e amadureceu ao ter sido torturado pela imprevisibilidade da vida. A agressividade agora foi dominada pela conformidade e esperança. Há mais celebração do que revolta. “Get ready for love!”.
Texto colaborativo de Rodrigo Costa Santos e André Correia.