A carreira de Morrissey pode dividir-se, grosseiramente, em três grandes fases. A primeira, aquela que o fez e que para sempre o acompanhará – para o bem e para o mal – é a carreira dos enormes The Smiths, entre 1982 e 1987. A segunda, já a solo, vai de 1988 a 1997, compreendendo seis discos, entre os quais destaco o primeiro, Viva Hate, muito graças a dois estrondosos singles: “Suedehead” e “Everyday is like sunday”. Há depois um hiato até 2004, quando surge o regresso aos discos com You are the quarry. Este é, para mim, o melhor disco de Morrissey a solo e aquele que mais tranquilamente pode ser colocado entre os colossos dos Smiths, como The queen is dead e Strangeways here we come.
Foi com You are the quarry (2004) que Morrissey deu o pontapé de saída desta nova fase, e modernizou o seu som face ao pop anos 80/90 com cheirinho a Smiths que fizera em todos os discos anteriores. Os seus discos, agora, têm, musicalmente, muito menos a ver com os da sua histórica banda. Só as letras, claro, e a voz. Aquela voz.
Depois do portentoso Quarry, surgiram mais dois discos importantes, e na mesma linha de pop de primeira água: Ringleader of the tormentors (2006) e Years of refusal (2009). Todos eles bons discos, mas todos descendo, muito ligeiramente, a qualidade, a cada nova investida. E é nesta linha que surge este muito aguardado World peace is none of your business, mais um dos fantásticos títulos inventados por este talentosíssimo manipulador de palavras na língua inglesa.
A expectativa era alta porque: era Morrissey numa nova editora, algo importante para alguém que passou toda a vida a ter problemas com editoras (e isso voltou a acontecer já depois da edição do disco); era o disco depois de um hiato de cinco anos, o maior em muito tempo; e era o primeiro disco a sair depois da edição da premiada, aplaudida e bem sucedida autobiografia de Morrissey, editada pela prestigiada colecção de clássicos da não menos reputada Penguin.
A referência à autobiografia não é inocente. Tem sido sugerido que a sua edição permitiu ao cantor, finalmente, acertar contas com todos aqueles com quem se foi zangando pela vida fora (e esse ressentimento crónico era ainda muito visível no anterior Years of refusal). Aqui, em World Peace, Morrissey surge mais escondido, menos na primeira pessoa, pelo menos menos Morrissey enquanto ele próprio, confrontando o mundo com o seu falhanço. Talvez fruto do facto de estar já a trabalhar no seu primeiro romance, ele parece agora mais confortável em construir narrativas que vivam por si, personagens outras que não ele próprio.
Este disco traz, pelo menos, as coisas em que Morrissey é magnífico. Em primeiro lugar, o seu impecável tom e única forma de cantar: ouve-se cinco segundos e sabe-se de imediato quem está a cantar, e mesmo se tivesse apenas esses dotes vocais teria um lugar na história da música, enquanto extraordinário vocalista. Mas ele une isso a algo que está, mais do que nunca, presente neste disco: a capacidade de escrever letras que viveriam mesmo sem música. Morrissey é um letrista de excepção e insiste em mostrar-nos que, ainda que difícil, não é impossível fazer música pop letrada, com cabeça, poesia e sentido de humor. Quem mais faria canções com tão bons títulos como “Neal Cassady drops dead”?
World peace is none of your business é também um dos discos mais densos, em termos de texturas, da carreira de Morrissey. Todas as músicas são trabalhadas com atenção aos pormenores como não é comum na sua obra. É um disco longo, com a maioria dos temas acima dos 4 minutos, acima do prazo de validade estipulado pela ciência pop do planeta das playlists. Nesse espaço, cria-se toda uma narrativa, um mundo, um cosmos. Uma história que é conduzida pela letra, claro, com a voz bem à frente a tudo comandar. Mas a cama musical, essa, está povoada por pormenores muito interessantes: guitarra flamenco aqui e ali, harpa, as mais comuns guitarras dedilhadas “a la Smiths”, castanholas, piano, electrónica muito subtil. Por outro lado, se cada música é trabalhada com mais profundidade, faltam aqui as malhas pop demolidoras que fizeram de You are the quarry, por exemplo, uma metralhadora de êxitos.
Das 12 músicas deste disco, talvez apenas “Kiss me a lot” e “Staircase at the university” agarrem à primeira, e nenhuma pelos colarinhos pop que nos obriguem a voltar uma e outra vez, como viciados à procura da dose. Este não é disco para isso. Não é disco para paixões adolescentes, para amores de Verão. É um disco maduro, um mistério que não repele mas que se vai revelando muito aos poucos.
As peças centrais do álbum, como manifestações de intenções, são “I’m not a man” e “Oboe concerto”. A primeira, com um extraordinário título para quem já foi acusado de ser gay e de não ser abertamente gay (ele diz que ama pessoas, não sexos), concentra, nos seus mais de sete minutos de crescendo,várias das mensagens centrais do que é Morrissey, hoje e até aqui. A música propriamente dita, uma espécie de sonoridade de caixinha de música, começa bem depois do primeiro minuto do tema ter passado. As palavras são entregues com um estilo quase dissonante de Willy Wonka, até a guitarra agarrar no cenário e começar a acelerar as coisas até ao pico. O tema? O que é ser homem, o que é ser agressivo, burro, violento, fanfarrão, e como Morrissey nega tudo isso. É claro que estraga tudo quando leva o exercício longe demais e diz que ser homem é comer carne, e que por isso não quer ser homem, e acaba, literalmente, a cantar acerca de cancro na próstata. Mas é, ainda assim, um manifesto de alguém cuja sensibilidade e cujas convicções sempre o fizeram andar à margem.
“Oboe concerto”, que fecha o disco, é Morrissey a contemplar a mortalidade, a partida de velhos amigos e ídolos, e que a cada momento se está mais próximo de ser…o próximo. Um tema calmo, filosófico e muito bonito, a que não será alheio o facto de o autor ter vivido uma série de problemas físicos no último ano.
Sei que esta crítica, que já vai longa, não diz – como se pretende – de forma condensada e directa o que se achou do disco, ou o que o leitor e futuro ouvinte poderá nele encontrar. Lamento, mas há discos assim, que só assim podem ser tratados. Ao contrário do que costumo fazer – tento ouvir o disco alguns dias mas sem deixar passar demasiado tempo desde a primeira opinião – ouvi este disco todos os dias ao longo de três semanas. E ainda assim não me sentia pronto a fazer essa tal crítica limpa, formatada, utilitária.
Tentarei, enfim, resumir.
É um disco que musicalmente, é muito menos directo que os seus antecessores. Tem menos momentos de puro pop, e é pouco provável que venha a dar a Morrissey algum single número um em Inglaterra ou nos EUA. Mas o lado bom dessa falta de imediatismo “superficial” é a profundidade dos temas, dos arranjos, da forma como o tempo das canções se acomoda ao desenrolar das letras que continuam extraordinárias. Como outra desilusão devo apontar uma questão de puro gosto pessoal: não gosto de música pop panfletária ou evangélica, e não tenho saco para ouvir Morrissey apelar ao boicote ao voto, em falsete, ou atacar pela milésima vez quem come um bife. Mas é Morrissey, lá está, e no mais puro momento pop traz-nos a fome, a guerra na Ucrânia, os direitos dos animais e uma doença venérea, banhada a literatura beat. É por isso que ele é mais que a acabada voz dos Smiths. É por isso que não desapareceu.
World peace is none of your business não trará a Morrissey nem mais um fã que já não tivesse, e é possível que afaste alguns dos antigos. Não sendo um álbum “difícil”, requer atenção e recompensa essa atenção. Para quem, ao décimo disco, esperava ver o artista revelar um pouco mais do que é, isto é contrário: é o adensar do mistério, a multiplicação de mundos e ambientes nos quais ele se move.
World peace is none of your business é, apesar de todas as suas limitações medidas por critérios mainstream, um triunfo. Porque reforça, mais uma vez, o estatuto de Morrissey enquanto o autor mais criativo, inventivo, audaz e autêntico do mundo da pop actual. O mistério não está desfeito. O mito envelhece, amadurece, mas insiste.
Prima-dona? Génio? Relíquia do passado? Sim, talvez tudo isso.
Acima de tudo, Morrissey. Ainda e mais do que nunca, um enigma artisticamente relevante.