A rainha carioca é uma verdadeira deusa das canções. Marisa Monte sintetiza o passado, o presente e abre portas para o futuro da música popular brasileira.
É um prazer vê-la regressar. A sua voz cristalina, a sua presença solta e leve, o ar suave que transparece dos seus gestos e da sua música resultam sempre bem, muito bem, extraordinariamente bem. Para ela, as nossas portas estarão abertas a qualquer hora de qualquer dia em que pretenda visitar-nos. Assim aconteceu ontem, mais uma vez, em Lisboa, no Altice Arena, para gáudio de muitos que, como nós, a veneramos desde os tempos de “Comida”, “Chocolate”, “Preciso me Encontrar” e de “O Xote das Meninas”. Marisa (de Azevedo) Monte, carioca de gema, portelense dos quatro costados e cidadã do mundo, abriu as Portas do seu palco para o prazer de vê-la e ouvi-la ao vivo. No passado ano, Marisa Monte fizera-nos outra visita, a Oeiras, apresentando um espetáculo bastante idêntico ao da noite de ontem, embora menos requintado e mais curto. Também a fomos ouvir nessa altura, e podemos garantir que permanece intacta, a qualidade do concerto, alargado no conceito, na forma e no tempo de duração. As suas mais clássicas e conhecidas canções são a base do show, que de tão infinito e particular brilham em qualquer noite de qualquer lugar. Não sendo propositada a rima, ela reforça, mesmo assim, a ideia do encantamento que se sente quando assistimos aos seus regressos. E o de ontem, como já terão percebido, não fugiu à regra.
Logo de início, antes ainda de vermos Marisa Monte em palco, um fio da sua voz ecoava, entoando alguns versos de “Pelo Tempo que Durar”, canção final de Infinito Particular (2006), mas que serve agora, num pequeno excerto, para iniciar o show Portas. E assim surgiu Marisa Monte, parecendo que a voz a trazia de um qualquer Olimpo acima das nuvens, das estrelas e do azul celeste. Chegou, como tantas vezes chega, coroada como se fosse (e na verdade é) uma autêntica rainha! Assim devemos vê-la e estimá-la, uma vez que algumas outras, de estatuto equivalente, nos foram deixando saudosos ultimamente.
De pouco vale fazermos o rol das canções de ontem. De pouco vale dizermos que são todas superlativas, todas únicas no modo como expressam o jeito e o estilo nobre, sereno e festivo da deusa carioca. De pouco ou nada vale registarmos aqui que muitas das nossas memórias se misturam e confundem com momentos passados a ouvi-la, e que algumas das letras das suas canções que tão bem conhecemos de cor, são já tão nossas como dela, fazendo parte do nosso imaginário real, parecendo extensões de nós próprios. É o que são, na verdade, “Maria de Verdade”, “Vilarejo”, “Infinito Particular”, “Ainda Bem”, “Beija Eu”, “Ainda Lembro” (“canção que não canto há um tempão e que faço agora pra ver comoestá a memória de vocês”), “Preciso Me Encontrar”, “Dança da Solidão”, “Eu Sei (Na Mira)”, “Velha Infância”, “Na Estrada” ou “Magamalabares”. Mas também, e ainda, “Não Vá Embora”, “Amor I Love You” (com a nuance inicial e final de “Lisboa I Love You”) e “Bem Que Se Quis” (E Po’ Che Fa’). Todas elas, sem exceção, iluminam recordações mais ou menos antigas, que vão existindo e permanecendo na doce penumbra dos prazeres das coisas boas da vida. Devemos isso a Marisa Monte, e por isso sentimos bem muitos dos versos cantados por ela, como, por mero exemplo, “você é assim / um sonho pra mim”, ideia ontem tornada realidade mais uma vez.
Ontem, Marisa Monte voltou a revelar-se empática e doce para com o público, para com a sua banda, para com os “técnicos invisíveis da cultura”, como bem soube dizer, que fazem acontecer o espetáculo. Mostrou-se feliz pela partilha da sua arte e mais ainda por saber, emocionada, que à sua frente havia uma pequena imensidão de gente igualmente satisfeita por revelar o amor que sente por ela. E julgo ainda que terá sentido, perdido entre os milhares das plateias e dos balcões, um coração que batia mais forte que todos os outros, e que ainda bate dessa mesma maneira enquanto regista estas palavras, que mais não são do um longo e ternurento abraço humano dirigido à deusa Marisa Monte.
Fotografias: Hugo Amaral













