O rapper de Compton edita o seu disco mais divisivo no mesmo ano em que mostrou que é um tipo que é melhor não provocar.
Kendrick Lamar é um tipo estranho. E não só pelos sons esquisitos que gosta de largar a meio das canções (ando há seis meses a repetir irritantemente “wop, wop, wop, wop, wop”), mas pela forma como salta à corda com os seus vários lados. Tão rapidamente é um líder civil como um hood rat, um homem temente a Deus, como um pecador incurável. Tão depressa diz querer trazer a paz para o mundo do rap como no ano seguinte decide incendiar completamente o jogo e destruir completamente o seu némesis. E depois de ter editado o seu disco mais introspetivo, em 2022, dá-nos agora um disco de celebração de si mesmo.
2024 foi um ano em que a cena musical pop foi indelevelmente marcada por uma altercação entre dois dos rappers mais famosos da história. Façamos um resumo: em março saiu a canção “Like That”, de Future e Metro Boomin. Convidado para contribuir para um verso, Lamar respondeu à pergunta sobre quem são os três maiores rappers da atualidade: Drake, J. Cole ou Kendrick? A resposta do californiano? “Mother-fuck the big three, nigga it’s just big me”
Esta provocação esteve na origem de um beef de proporções bíblicas (na verdade é mais uma competição de medir pilinhas, mas adiante) entre Kendrick Lamar e Drake. O consenso final (e factual) é que o canadiano foi ao tapete de forma feia e Lamar foi coroado rei. (É difícil recuperar quando o adversário põe milhões de pessoas a cantar que és um pedófilo.)
E o que faz Kendrick Lamar depois de ter um single de sucesso estrondoso em “Not Like Us”, vencer a batalha da década, dar uma festa de antologia na sua cidade natal e receber um convite para atuar no Super Bowl? Faz uma digressão de vitória? Fica a aproveitar o saque? Lança um segundo single para aproveitar o embalo? Não. Lança uma canção magnífica sobre como o rap game está a morrer. E deixa-a apenas no Instagram para que não haja assim tanta gente a ouvir. Nós avisámos: Kendrick Lamar é um tipo estranho.
Mas depois começaram a surgir os rumores de um novo disco e sem qualquer aviso oficial lá apareceu o álbum nas plataformas de streaming. GNX é o sexto disco oficial de Kendrick Lamar e provavelmente o seu projeto mais divisivo até à data. Entre canções fortemente influenciadas pelo g-funk (“squabble up”) dos quais Snoop Dogg e Dr. Dre foram pioneiros na década de 90 e outras altamente sensuais (“luther”), este é um dos discos mais incoerentes do músico (que, repetimos, é um tipo estranho).
O disco conta com a participação da cantora mariachi Deyra Barrera em três composições (a primeira, a do meio e a última), a produção de Jack Antonoff (produtor de Taylor Swift e dos melhores discos de Lana del Rey) e Mustard (que produziu “Not Like Us”) e ainda tem duas canções com SZA. Há ainda vários jovens rappers da Costa Oeste que têm em GNX a primeira hipótese de chegarem ao grande público.
Há vários momentos de destaque no disco, como o bravado da canção de abertura (“You live in denial / Ayy, fuck anybody empathetic to the other side”); o grito de “MUUUUUSTAAAAARRRRDDDD” e a vibe descomprometida em “tv off” (“Feel entitled ’cause he knew me since I was a kid / Bitch, I cut my granny off if she don’t see it how I see it”) ou o abraço colectivo aos amigos em “heart pt. 6” (“Ab-Soul in the corner mumblin’ raps, fumblin’ packs of Black & Milds / Crumblin’ kush ‘til he cracked a smile / His words legendary, wishin’ I could rhyme like him / Studied his style to define my pen / That was back when the only goal was to get Jay Rock through the door”).
Há também canções menos bem conseguidas. “luther” é chata e “dodger blue” é algo muito pior: esquecível. Mas não são fracas o suficiente para ofuscar o verdadeiro brilho de GNX. E esse assenta em quatro canções: “wacced out murals”, “man at the garden”, “reincarnated” e “gloria”.
“man at the garden” mostra o rapper em crescendo sobre um beat simples. A letra é repetitiva, quase em modo mantra: “I deserve it all”. Esse “all” são carros, jóias, respeito, prémios, um público fiel, bênçãos de Deus, paz interior. E porquê? Porque as suas ações foram “puras”, deu a outra face, orgulhou os seus pais e está a ensinar o caminho justo aos seus filhos. E no final, uma canção que parecia de agradecimento e compromisso para com os outros, passa para um ataque aos que “sujam” o seu campo de trabalho.
“reincarnated” é construída sobre um beat de uma canção de 2Pac (“Made Niggaz”) e é um tema onde Kendrick rima sobre artistas com os quais se identifica: o bluesman John Lee Hooker e à maravilhosa Dinah Washington. Diz mesmo que é a reencarnação destes dois ícones musicais numa conversa com o seu pai (terreno ou celestial?) na qual procura justificar as suas opções pessoais. A resposta do pai/Deus? “Lembra-te que outros antes de ti tentaram voar demasiado alto. Destruí-os para devolver tudo aos meus filhos favoritos.”
A canção que fecha o disco, “gloria”, conta com a participação de SZA e recupera uma tradição muito bonita do hip hop: escrever canções de amor que parecem ser para uma mulher e afinal são canções de amor à arte. “gloria” é lindíssima e entra para o panteão desta categoria específica que conta ainda com “I Used to Love H.E.R.”, de Common ou “Retrospectiva de um Amor Profundo” de Sam the Kid (ninguém o fez melhor que ele).
Há coisa de um mês, Kendrick foi entrevistado por SZA para a Harper’s Bazaar e explicava como tem vindo a aprender a ser frágil, a abraçar o seu lado feminino e a controlar a sua hipermasculinidade. Mas este ano começou com os ataques mais cruéis a Drake e eles continuam em GNX. Nós avisámos: este gajo é estranho. E genial.
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Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)
- Walt Whitman, “Song of Myself”