No ano que que Joana Espadinha vai, provavelmente, fazer a dobradinha nos tops de disco do ano, o Altamont encontrou-se com Joana Espadinha numa agradável esplanada de Algés para uma deliciosa conversa sobre o disco, camisas, e até feminismo.
Altamont: Quando comecei a pensar nas perguntas para esta entrevista lembrei-me de um artigo do Miguel Esteves Cardoso que dizia “músicos e escritores gostam sempre mais do disco ou do livro mais recente “. É o teu caso?
Joana Espadinha: Sim, sinto que este é o meu melhor disco até hoje. E se calhar, o próximo também vou achar a mesma coisa, mas acho que este traduz fielmente a artista que eu sou hoje e aquilo que eu quero dizer ao mundo. Também estou numa fase em que já aprendi muito com os erros do passado e já saí da minha zona de conforto.
Altamont: Embora este disco siga a linha dos anteriores, arrisco-me a dizer que é diferente. Poderá ser influencia da produção do António Vasconcelos Dias (Tony Love).
Joana Espadinha: A produção tem sempre muita influência. O meu primeiro álbum “Avesso” (2014), que pouca gente conhece, é um álbum muito diferente dos outros que fiz a seguir porque era um álbum que ainda tinha um bocadinho do jazz que foi a minha formação e depois tinha um lado muito melancólico, muito negro, é muito tenso. Também é um álbum que eu adoro, mas que bebeu muito da minha inexperiência naquela fase e tem um elemento que eu acho que foi fundamental, o facto de não ter produtor, ou seja, fui eu e os músicos que trabalhavam comigo que produzimos o álbum.
Depois, quando eu conheci o Benjamim, e houve uma mudança, a produção feita com produtores que também são músicos, e músicos no activo, faz toda a diferença. Eles têm outra visão de tratamento que devem dar às canções, de alguém que vai para a estrada apresentar as canções ao mundo. E, nesse sentido, o Benjamim foi absolutamente fundamental porque também me ajudou a encontrar uma linguagem de produção pop, porque eu ainda tinha muito aquela coisa muito crua do jazz.
Fiz dois álbuns com o Benjamim e foram os dois diferentes. Um dos discos foi feito na fase de COVID, foi gravado em estúdio com banda e depois fez-se a pós-produção, foi um álbum que teve um processo um bocadinho diferente eu gostei muito de fazer os dois, tenho muito carinho pelos dois.
Mas senti algumas saudades da produção do 1º disco, aquela coisa de estar minuciosamente, com muito tempo, a olhar para cada canção e na altura foi claramente fruto da circunstância. Agora, com o Tony, recuperamos um bocado isso e o Tony, na verdade, é músico, e trabalha com o Benjamim. Eles têm algumas coisas em comum, são os 2 excelentes músicos e são pessoas apaixonadas por música. No caso do Tony, ele ajudou-me a recuperar um lado que eu tinha um pouco esquecido, que era este lado mais melancólico, mais acústico. Eu tenho muita influência da música norte-americana, do folk, quando tinha 16 anos, ouvia muito Sheryl Crow e apesar de ela ter feito um caminho que atualmente já não me interessa tanto, a fase inicial da música dela, foi muito importante, uma referência muito importante para mim.
Depois, por outro lado, tenho aquelas canções mais pop, mais açucaradas, que têm uma linguagem um bocado diferente. Como juntar tudo, era uma dúvida para mim, até se era possível e resultou muito.
Também há uma canção produzida pelo Ben Monteiro, foi o primeiro single que eu lancei, que é uma canção esteticamente diferente das outras, mas que o António depois conseguiu usar algumas referências também do Ben. Foi uma canção muito importante para mim, porque me ajudou a soltar a voz, o Ben ajudou-me muito a voltar a acreditar na minha voz e ia tirar o melhor dela. Ele foi mesmo até ao tutano e puxou por mim, acho que marcou a liberdade com que eu cantei o resto das canções.
Portanto, eu diria para resumir a minha resposta, que o Tony deu-me muita liberdade. A dedicação dele e a minúcia com que ele trabalha cada canção, fez com que este álbum conseguisse ter uma unidade, apesar de ter dois lados: um claramente mais pop, mais alegre e outro mais melancólico.
Altamont: Já falaste aqui do jazz e da pop. Os teus discos, neste momento, estão a seguir um caminho mais pop. É na pop que te sentes mais à vontade?
Joana Espadinha: Eu não penso muito nos rótulos. A verdade é que eu acho que os rótulos são muito perigosos, um disco é muito difícil de rotular e as pessoas perguntavam: “Isto é jazz?” ou “Isto é pop?”. Mas efetivamente é preciso chamar-lhe alguma, portanto, a pop acaba por ser aquilo que é mais vasto, aquilo que é mais abrangente.
Altamont: E não tens vontade de voltar a criar canções mais viradas para o jazz?
Joana Espadinha: Agora não, o jazz faz parte da minha vida e ajudou-me muito, deu-me muitas ferramentas que me permitem escrever a música que faço hoje, porque a improvisação, que é uma coisa muito jazzística, no fundo é compor em tempo real. Acho que foi mais fácil conseguir compor de uma forma mais sustentada com tudo o que aprendi com essa liberdade que de improvisação.
E depois, eu continuo a dar aulas de jazz, portanto não cortei essa ligação. Sinto que, apesar de eu gostar muito de cantar standards de Jazz, por exemplo, ou mesmo escrever temas mais na linha jazzística, eu sinto que, os standards de Jazz já foram cantados por imensas intérpretes incríveis e não acho que facilmente consiga deixar uma marca no mundo com algo escrito por mim e a música que quero escrever já não é nesse estilo, vou atrás da música. Se daqui a 20 anos escrever qualquer coisa mais jazzística, olha, pronto, vai ter de ser.
Altamont: Bom a próxima pergunta foge um bocado à música, mas tem mais a ver com a parte estética. Porque eu fiquei completamente fascinada com a camisa que usaste no B.Leza, na apresentação do disco. Há aqui uma atenção dada aos pormenores? Tanto nos espetáculos, nas capas dos discos, nos telediscos, etc. Isto é uma coisa muito pensada?
Joana Espadinha: Nós os artistas, quer dizer, principalmente as artistas femininas têm uma atenção extra com a sua apresentação e com a imagem, e às vezes uma pressão extra. No meu caso, sempre fui uma pessoa muito descontraída e com gostos muito clássicos. Tinha vontade de usar outras coisas, e trabalhei com alguns stylists, e senti sempre que não era eu, não estava muito confortável naquele papel.
E desta vez eu trabalhei com outro stylist e já tinha mesmo a lista do que eu já sabia que gostava e disse-lhe: “este tipo de peças são a minha cara, eu quero uma coisa mais retro.” Também lhe dei algumas referências de artistas que eu gostava e nesse processo, fui olhando para vários artistas que eu admiro tentando perceber o que é que eles vestiam e como é que eu me ia sentir mais confortável.
A Joana Linda, que fez a minha sessão de fotografias e que tem feito sempre as capas dos meus discos, e é uma fotógrafa inacreditável, perguntou-me porque é que não mandava fazer uma peça para os concertos, e eu já tinha muita vontade de fazer isso. Ela conhecia o Nuno (Velez) e pôs-nos em contacto. Eu cheguei ao Nuno com uma ideia muito clara, porque eu queria uma coisa que em palco funcionasse, se eu abrisse os braços criaria uma espécie de asas. Eu gosto muito da Stevie Nicks, dos anos 60, 70, queria assim uma coisa artística bonita, que não estivesse muito longe da minha simplicidade, mas que tivesse classe e tivesse esse movimento, ele adorou a ideia das franjas. E fez duas peças, uma mais romântica, e aquela camisa, mas a minha favorita foi a camisa e a combinação com aquelas calças.

Altamont: Muitas das tuas canções têm mensagens bastante fortes, por exemplo, em “Vergonha da Cara” e em “Ginger Ale”. São factos autobiográficos ou pensas também como é que vais impactar nos outros?
Joana Espadinha: A verdade é que tem sido sempre autobiográfico, obviamente pensamos no impacto que vai ter depois e nas pessoas que se vão identificar. “Ginger Ale” é o melhor exemplo, escrevi aquela canção numa crise de escrita, eu tinha sido mãe recentemente e estava completamente assoberbada com isso. De repente, a única música que me pareceu real foi essa, falava exatamente do que eu estava a viver e quando eu convido a Diana, eu sabia que ela tinha 3 filhos, e que sabia bem do que é que eu estava a falar.
Inclusivamente nós fizemos agora uma nova versão dessa música em que eu também canto com a Diana, a Ana Bacalhau, a Marisa Liz, a Luísa Sobral e a Selma Uamusse e fizemos disso uma iniciativa para ajudar o OVO, que é o Observatório da Violência Obstétrica. Enfim, há muitas instituições neste momento a fazer um trabalho muito importante nestes assuntos que são tipicamente femininos.
No fundo o feminismo quer a liberdade da mulher e a igualdade de oportunidades e de direitos. Há vários caminhos para o conseguir e também é preciso desmistificar a palavra, porque para muita gente continua a ser uma coisa de mulheres contra homens.
Eu entendo o peso que a música tem nesse sentido, não foi a primeira intenção quando a escrevi, era mesmo para ser uma coisa autobiográfica. Depois, na questão do “Vergonha na Cara”, eu acho que eu tenho feito um processo longo, para ganhar confiança em mim própria desde que era adolescente, e a adolescência que é um período tão essencial para nós, é tão definidor da nossa personalidade, teve alguns momentos duros para mim, de me esconder, e de ter medo de dizer o que eu achava. Acho que esta canção vem um bocado tentar resolver isso.
É dizer: não vou mais moderar, não quero saber porque é que os outros vão pensar se gostarem, gostam se não gostaram, não gostam, mas aquilo que eu tenho para dizer tem o seu valor e portanto, a canção. Assim um grito do Ipiranga, do que era essa fase da minha adolescência.
Altamont: Ficar mais velha é óptimo, bem diferente de ter 20 anos.
Joana Espadinha: Com essa idade estávamos a aprender, estávamos a perceber. E a maior parte das pessoas, que nós, admirávamos, eram pessoas que se calhar tinham era um bom bluff, porque toda a gente está cheia de dúvidas nessa altura, não é?
Altamont: Falaste aqui sobre o feminismo, alguma vez sentiste um julgamento ou um tratamento diferente por seres mulher?
Joana Espadinha: Eu acho que onde eu senti se calhar mais desigualdade foi no início, no segundo disco, por exemplo, que foi o disco que chegou ao público, e também aos jornalistas, ouvia muitas vezes a pergunta “A Joana só escreve a letra, não é?” e, era eu que escrevia tudo. Porque é que assumem que eu não escrevi a música? Foram essas as pequenas coisas que fui sentido, condescendências.
Eu acho que esse disco também foi, um passo muito importante para mim porque eu tenho trabalhado com duas Managers que são grandes amigas, a Camila Reis e a Filipa Bastos.
Sinto que sou dona da minha carreira neste momento, portanto, houve muitas decisões que foram tomadas em conjunto e muitas também foram tomadas por mim. Elas disseram: “Bora Joana, força nisso!” e isso foi importantíssimo para a minha carreira. Há escolhas, inclusivamente estéticas, que passaram por mim e que eu sinto “OK, ainda bem que eu segui os meus instintos e que não andei à procura de outras validações.”
Se isto tem a ver com desigualdade de género, não. Eu acho que tem, mas é porque tem a ver com a posição de fragilidade que nós nos habituamos.
Altamont: Uma das canções mais bonitas que escreveste não é cantada por ti, mas sim pela Claudia Pascoal, “O Soldado”…
Joana Espadinha: Ah, ninguém sabe disso, é muito engraçado. Eu acho que nunca ninguém me perguntou sobre essa canção.
Altamont: Como é o processo criativo quando escreves para os outros? É muito diferente quando escreves para ti?
Joana Espadinha: É diferente porque quando escrevo para mim, normalmente estou em modo disco e então tenho várias canções a meio, vou experimentando e fazendo maquetes. Quando eu escrevo para outras pessoas, vou tentando imaginar como é que será cantado pela voz desse intérprete. Vou tentando escrever algo que eu acho que se adequa mais ou menos à sua vida, porque acho que não é fácil cantar uma coisa que não tenhamos vivido.
E é preciso às vezes, essa sensibilidade. É muito difícil escrever uma canção sobre uma separação para alguém que está muito feliz numa relação. A maior parte das canções que dou, eu não as cantaria. Acho que não são para mim mas há algumas exceções, algumas canções que eu dei e até penso “se calhar vou voltar a gravar isto” porque esta canção tem muito a ver com aquilo que eu faço. “O Soldado” é uma canção que também faria sentido eu ter cantado.
Conhecemo-nos no Festival da Canção, no que ela ganhou, e num concerto da Elisa Rodrigues, eu tinha escrito para Elisa, ela veio ter comigo e disse que gostava de receber uma canção minha, uma coisa mais melancólica.
Altamont: Uma canção mesmo muito bonita. Este ano, para além de um disco teu, tivemos também um dos Cassete Pirata. Como é feita a gestão entre os dois projectos?
Joana Espadinha: Honestamente, não há assim tantos concertos neste segmento do indie pop/rock e não tem tido muitas datas para tocar. Estamos numa fase particularmente crítica e é uma pena porque há imenso talento e imensos projetos incríveis. Acho que, sobretudo os municípios, tem de diversificar mais, pegar nos artistas incríveis que o nosso país tem. Existem artistas que já têm um público grande e que são apostas garantidas, mas depois há outros que tem muito potencial, e que ainda não são conhecidos do grande público. Isso é uma coisa que pode melhorar. Agora, voltando à tua pergunta, temos algumas datas, e Cassete está a fazer o lançamento mais para o fim do ano. Isso também facilitou muito a gestão em casa. Além de que nós temos também músicos em comum. A Margarida Campelo, por exemplo, toca em Cassete e toca comigo, o António Quintino, não toca comigo, mas algumas vezes substituir o nosso baixista, o João Pinheiro. Portanto, às vezes é uma grande família e vamos alternando.
É um privilégio muito grande fazer música com amigos porquê é uma carreira que tem muitos altos e baixos e que não é fácil. Acaba por se passar muito tempo fora do palco. Há muitos ensaios, há muita estrada, e não só os concertos. A pessoa vai passar o dia todo fora e depois faz o concerto e dorme, e depois volta no dia seguinte. Se eu me desse mal com estas pessoas, se fosse só uma relação fria só baseada na parte musical, acho que não seria tão bom para mim, se calhar já me tinha cansado da profissão. Por outro lado, acho que a música bebe destas relações pessoais. Se calhar é um bocado “romântico”, mas acho que nós tocamos o que somos e a música que fazemos em conjunto depende muito dessa ligação pessoal. Estou muito contente com a minha equipa e com as pessoas com quem tenho tido a sorte de trabalhar, quer os produtores, quer os músicos e Cassete é um projeto do coração.