Jessica Pratt levou ao B.leza o seu universo-sala-de-estar e deu-nos a possibilidade de estarmos todos em comunhão na sua solidão aconchegante.
Há já umas semanas que as folhas das árvores estão a mudar de cor e os vendedores de morangos e garrafas de água vão sendo trocados pelos assadores de castanhas. Quando se anda a pé, já se cheiram as primeiras lareiras e o céu já aparece cinzento mais vezes. O frio, porém, só veio impor-se na passada quinta-feira. Parece que foi de propósito. Há mais ou menos um ano, o concerto de Alice Phoebe Lou, no LAV, também aconteceu numa noite muito chuvosa e taciturna e, aquele que podia ser um cenário desajeitado de guarda-chuvas e piso molhado, acabou por revelar um ambiente que fazia todo o sentido para a ocasião.
Neste dia 14 de novembro, saíram dos roupeiros, enfim, as golas altas, os cachecóis e as combat boots. O B.leza concentrava grande parte da população lisboeta de cabelos encaracolados e micro-franja, que vinha a mais um dia da segunda edição do Vale Perdido, evento cultural que ocupa vários espaços da cidade ao longo de quatro dias.
O primeiro concerto da noite ficou a cargo de Leonor Arnaut, que se estreou em nome próprio ao lado de Margarida Campelo, Filipe Louro e João Pereira. Já a conhecíamos enquanto vocalista dos Fumo Ninja, mas a sua voz única cativou a atenção de todos os presentes, sobretudo daqueles que não esperavam o concerto curto, delicado e potente a que iriam assistir. As músicas, desconhecidas do público, juntavam texturas de jazz e pop, com apontamentos de disco, misturando os tempos numa criatividade que faz sempre falta e deixando-nos atentamente à espera de novidades.

A sala estava escura e as luzes de cores quentes iluminavam a cadeira onde em breve se sentaria Jessica Pratt, acompanhada por banda completa, algo inédito na sua carreira. Discreta, quase com uma aparente vontade de se esconder e não ser vista por ninguém, chegou, cantou, agradeceu timidamente a cada aplauso e saiu. Noutros contextos, um concerto sem grande interação com o público podia ser mal encarado, mas, no universo de Pratt, uma sala de estar com lareira acesa e chuva a bater nas janelas, é a única forma de apresentação com sentido.
Abrindo com “World on a String”, Pratt oscilou entre o mais recente álbum, Here in the Pitch, e o disco anterior, Quiet Signs, passando ainda por 2015, tocando “Back, Baby”, para grande entusiasmo dos presentes. “Life Is”, que abre o novo disco, fechou o concerto, que beneficiou ainda de “On Your Own Love Again” e “Fare Thee Well” como encore.

Pratt é uma das poucas artistas que pode fazer quatro álbuns que soam todos de forma semelhante e dar um concerto que soa igual às gravações em estúdio, sem que isso seja repreensível. Estarmos em nossa casa a ouvir a sua música ou estarmos no B.leza nesta noite não teria grandes diferenças, mas é a possibilidade de estarmos todos em comunhão nessa solidão aconchegante que torna todo este fenómeno maravilhoso. Não são precisos artifícios quando a música vem directamente do sentimento mais profundo e toca na pele arrepiada. Pratt tem uma voz inconfundível, arranja pouco os arranjos, rejeita géneros e a sua música funciona como um todo uno do qual não vale a pena separarem-se as partes.
Como disse Tiago Freire, Jessica Pratt continua a ser “um segredo bem guardado e acarinhado por um punhado de fiéis” que não conseguem tirar os olhos – ou os ouvidos – deste universo-sala-de-estar quentinho que guarda em si toda a honestidade e intimidade do mundo. Afinal, é possível atingir a perfeição, nem que seja apenas durante uma hora, e aconchegar os fantasmas de cada um.
Setlist
World on a String
Poly Blue
Get Your Head Out
Better Hate
By Hook or by Crook
Opening Night
As the World Turns
Here My Love
Back, Baby
The Last Year
Life Is
— Encore —
On Your Own Love Again
Fare Thee Well
Fotografias: Vera Marmelo








