Jesca Hoop merece totais elogios. O recentíssimo Memories Are Now ouve-se da mesma maneira como nos entretemos com o nosso brinquedo favorito. Apetece não nos separarmos dele, de tão apetecível. É um brinquedo para adultos, portanto. Será possível desejar coisa melhor?
Ao seu quarto disco, a obra-prima? Haverá opiniões que sim, outras que não, e os mais sensatos dirão que essa é uma questão sem interesse, lateral. Mas que arrepia, que dói quando tem de doer, que nos faz sorrir pela inteligência das composições, das letras, isso é um facto indesmentível.
Memories Are Now é um álbum feito para o prazer íntimo de qualquer ouvinte, espécie de novelo de lirismos, sensações e ideias que se embrulham para dentro. Pequeno objeto-búzio, fusiforme, objeto capaz de nos sugar para o interior dos seus redemoinhos, para espaços-cavernas onde o equilíbrio entre a luz e a escassez desse fulgor se equilibram na perfeição. Mas não nos deixemos enganar pela elegância sombria do que se ouve e do que se ouve ainda melhor pelas palavras que nos chegam aos ouvidos. Apesar de sérias, sentidas, criteriosas, elas também ironizam o tempo em que existem, o agora que o título menciona. Sobretudo na canção que talvez melhor marque o tom do álbum, a iluminada “Memories Are Now”, que brinca (se a levarmos pouco a sério, numa primeira audição) ou pondera filosoficamente (nas audições seguintes, mais atentas e consistentes) sobre a fusão dos tempos passado e presente do mundo apressado em que vivemos. Tudo parece acontecer agora, esmagando-se os tempos que sempre existiram, condensando-os num único momento sem futuro. Tudo emerge agora, tudo se conjuga num só tempo verbal ou em imagens que substituem as palavras, mas sempre agora, porque o passado e o presente são um só instante. É este o mundo que nos liga à vida, rápido e fulminante.
Outra belíssima canção é “The Lost Sky”. Intimista, como todas as do disco, timbrada à meia-luz (tremeluzente, quase às escuras) em que Jesca Hoop nos diz, entre tantos lindíssimos versos, que “Out of our secrets, we built a home / Confide and fortify, blood, bone” para que compreendamos de uma vez por todas a espiral que nos enleia, que nos enreda, à medida que avançamos disco adentro, canção após canção. Não demora muito até nos sentirmos sorvidos, pequenas Alices em queda profunda nas espirais de The Memories Are Now.
Jesca Hoop é inclassificável, outsider que vagueia por onde muito bem entende, estendendo-se vagamente até onde Tori Amos costuma habitar (mas logo deixando esses terrenos), outras vezes espreguiçando-se até tocar a pele melodiosa de PJ Harvey em White Chalk, outras ainda piscando o olhar à envolvência composicional de Kate Bush ou de St. Vincent. Ou talvez nada disto faça verdadeiramente sentido (talvez não faça mesmo, acreditem, talvez não faça mesmo) quando um disco é ainda um objeto que resiste, depois de várias audições, a catalogações simplistas sempre prontas a saltar das teclas da crítica. Sejamos comedidos, deixemo-nos levar pelo frondoso e denso processo de reconhecimento destas memórias, que não sendo nossas, parece que nos adotam aos poucos, até fazermos em definitivo parte delas.
São apenas nove canções, todas porosas e sedutoras. Mesmo sabendo que é ainda março e que 2017 será farto e longo (se os deuses da música assim o entenderem, obviamente), pouco nos resta senão proclamar Memories Are Now como um dos potenciais grandes vencedores do ano. A beleza é tanta e tão esmagadora, que dificilmente poderá vir a ser de outro jeito. Até porque “No matter what you say / I’ve got work to be doing” e isso só ainda agora começou a causar a prazerosa inquietação que aqui tentámos transmitir. O disco, certamente, continuará a produzir o seu efeito dentro de nós, até que por inteiro façamos parte dele.