Há quem a utilize para relaxar ou para trabalhar. Mas a melhor forma de ouvir música Clássica é a prestar-lhe a devida atenção que ela merece. De preferência, num bom sistema de som.
Depois de repetidas incursões à minha colecção de discos, na procura de registos dignos de artigo de opinião, achei que aos 20 anos de existência, o nosso Altamont seria capaz de acomodar a primeira crítica de um registo de música Clássica nos seus ficheiros. Uns dirão que fui longe demais. Outros apreciarão a pedrada no charco. Acima de qualquer juízo de valor, e para fazer pleno jus ao conceito “Música Sem Gerações”, a Clássica não poderia continuar a ficar fora do espectro temático deste bastião de pluralidade que é o Altamont. Além do incontornável valor histórico e da sua riqueza didática, este género musical vai muito mais além dos preconceitos redutores dos ditos melómanos eruditos que se recusam a sintonizar outra estação que não a Antena 2.
O objectivo principal deste artigo não é obrigar-vos a gostar de música Clássica. Longe de mim tal pretensão. O fito desta proposta passa sobretudo por querer estimular a nossa predisposição para os diversos géneros musicais que temos à disposição. É que facilmente nos acomodamos em dois ou três géneros musicais, e aí vamos enquistando as nossas escolhas do dia a dia, reféns de uma rotina que nos deixa menos abastados. Há dias dei por mim a constatar que, nos dois últimos anos, raramente saio do panorama Pop, Rock e Electrónico. Bem sei que a pressão da indústria musical nos empurra muitíssimo para aquilo que os promotores querem vender em concertos e festivais. Mas vendo as coisas em retrospectiva, parece-me que quando somos mais jovens estamos bastante mais receptivos a variadas correntes musicais. Porque temos mais tempo livre, mas sobretudo porque ainda não estamos formatados para aquelas que vão ser as nossas derradeiras escolhas e opiniões. Ora então, o grande trunfo da arte é obrigar-nos a essa flexibilidade criativa, de modo a não estagnarmos, alimentando o nosso intelecto com uma dieta o mais variada possível e rica em nutrientes emocionais.
Como neste ou noutro género qualquer, segundo os pressupostos do processo de criação musical, um disco nunca é só o lançamento de um conjunto de músicas. Há um propósito subjacente que lhe dá corpo à história que nos quer contar. Neste caso em concreto, e especialmente na música Clássica, o foco principal incide sobre as interpretações, uma vez que a maior parte das vezes trata-se de obras compostas na faustosa época de ouro da música Clássica – que vai de Bach até Beethoven.
Há contudo um estigma muito grande à volta do valor cultural da música erudita. Por ter sido criada com o intuito de dourar os serões das casas reais europeias do século XVI, continua a estar muito associada à nobreza e às classes mais favorecidas, mesmo passados cinco séculos do seu aparecimento. Acontece que a a música sinfónica hoje em dia entra-nos pelos ouvidos através de coisas tão banais como o cinema, a publicidade ou quando ouvimos uma selecção de futebol entoar o seu hino nacional com a mão no peito. A Clássica é tão ou mais universal que qualquer outro género da música moderna. Própria para qualquer idade e consumível em qualquer momento, sem contra indicações.
O facto de ter escolhido um disco sem orquestra foi de alguma forma intencional. Trata-se de um conjunto de sonatas para piano, instrumento esse sobejamente familiar e utilizado em variadíssimos géneros musicais. Gravado em 1995 para a conceituada etiqueta de música Clássica Deutsche Grammophon, esta interpretação de Ivo Pogorelich situa-se algures entre a rigidez da disciplina soviética e alguma da irreverência estilística da cultura folclórica dos bálcãs. Há puristas que acusam o músico croata de alguma falta de romantismo. Dizem que lhe falta a delicadeza delicodoce na leitura dos tempos defendidos pelo génio de Mozart. A suavidade lírica na percussão das teclas do instrumento. Curiosamente, o que me agrada no estilo de Pogorelich é justamente essa precisão cirúrgica, que empresta a estas sonatas um carisma mais matemático e não tão ameninado como é costume, quase a roçar a objectividade científica das composições recortadas de Sebastian Bach.
Muito haveria para falar deste conceituado pianista. O seu vasto registo discográfico consubstancia a sua importância nesta área, com obras que vão de Chopin a Ravel, passando por Bach ou Scarlatti. Ivo Pogorelich, quer se queira, quer não se queira, é um monstro na arte do piano, capaz de o tornar numa voz individual ou no acompanhamento imprescindível de uma orquestra que sem a sua presença transformar-se-ia num fogo de artifício durante o dia. Nenhum outro artista observa as sutilezas da dinâmica e do ritmo da mesma forma que Ivo, ainda que alguns segmentos fortíssimos possam por vezes soar exacerbados, no meio do pontilhado de notas algumas quiçá imaginárias. Seja como for, postas de parte as subtilezas interpretativas deste disco, estamos na presença de uma peça de beleza clássica perene. Um óptimo começo ou um incontestável regresso aos fascínio da música que dispensa letras por ser tão eloquente. Fantasia pura.