Erica Buettner fala primeira vez sobre o seu cancro e mostra-se esperançosa num futuro regresso à música.
A cantautora americana, Erica Buettner foi diagnosticada com cancro da mama aos 32 anos de idade. Como qualquer jovem cuja sensação de vida eterna ainda beija os lábios e o sabor ainda é tão fresco a juventude, o choque de uma notícia assim leva a um turbilhão que vira a vida do avesso. Erica viveu cinco anos em Portugal, é casada com um português e mudou-se para os Estados Unidos, sua terra natal, com um álbum novo gravado que ficou na gaveta à espera que a vida o devolva a ela. E quais são os seus planos, os seus receios, que vida existe numa vida com cancro? Será que os jovens estão assim tão protegidos?
Tenho 34 anos e sou doente oncológica, foi-me diagnosticado um cancro da mama em Outubro de 2013, terminei os tratamentos em 2015 e antes de me de sentar a traduzir esta entrevista estive a fazer uma mamografia e uma ecografia mamária, na revisão semestral a que estou sujeita. Enquanto esperava no hospital pensava na Erica, mas, não só na Erica, também pensava na Alexandra Correia Silva da FestMag e na sua alegria de viver que contagia qualquer cara feia, ou no André Ferreira da Lusa que já não está comigo, mas que do meu coração não arreda pé. Pensei nas pessoas que conheci na sala de tratamentos que de uma semana para a outra deixavam a cadeira vazia. Somos muitos e somos da mesma idade. O cancro já não é um fantasma que vagueia à volta dos avós, dos pais, sempre à volta dos mais velhos, o cancro está tão espalhado na sociedade que está na altura de o chamarmos por tu, o que é que tu queres? Queres-nos a nós? Não vais ter.
Pelas circunstâncias nos aproximarem, a Erica decidiu dar esta entrevista única, concedida com esforço entre sessões de quimioterapia, mas com esperança e profundo sentido de luta.
No próximo dia 25 de Março, no Musicbox, em Lisboa, acontece um concerto solidário com os músicos com quem colaborou no tempo em que chamou Portugal de casa. Frankie Chavez & Selma Uamusse, Beautify Junkyards e Nice Weather For Ducks sobem ao palco a partir das 22h. For Erica.
Descobriste há pouco tempo que tens cancro da mama. Qual foi a tua primeira reação?
Desde muito nova que apanhei vários sustos de saúde, no que diz respeito ao cancro da pele. Como resultado, tenho uma serie de cicatrizes visíveis no braço e na perna. A cicatriz no meu braço é muito proeminente e é, de certa forma, grande parte da minha identidade. Quando vivia em Portugal, fazia check-ups regulares no IPO. Gostava de dizer que algumas dessas experiências colocaram esta possibilidade no meu radar e tornaram esta notícia menos chocante, mas esses procedimentos não eram invasivos e eram rapidamente resolvidos. A realidade é que ser diagnosticada com cancro da mama aos 32 anos foi um enorme choque. Foi como um terramoto que avançava pela minha vida agitando e destruindo tudo. Ainda assim, quando percebi o que estava a acontecer, uma estranha calma tomou conta de mim. Nesses momentos acho que não tenho escolha a não ser enfrentar os nossos medos. Encontrei, em mim, recursos que não sabia que existiam.
Do momento em que descobres que tens cancro até à exacta altura que conheces todo o diagnóstico, as hipóteses que tens, as escolhas que tens a fazer e o que vais fazer, é uma odisseia. Na tua perspetiva quais são os maiores mal-entendidos em relação à doença?
O cancro assusta as pessoas, e está tão propagado que toda a gente tem algum tipo de experiência com ele. Quando as pessoas são deparadas com a notícia que um familiar ou uma pessoa que lhes é querida tem cancro, há alguns mal-entendidos que continuam a aparecer que podem ser muito dolorosos para com quem tem a doença. Tristemente, o cancro ainda está muito estigmatizado. Susan Sontag escreve sobre isto no seu trabalho “A Doença Como Metáfora”, em 1978. No coração do seu trabalho está o esforço de dissipar o mito de que as pessoas têm alguma falha de carácter ou repressão psicológica que atrai a doença. A pior coisa que podemos dizer a alguém com cancro é que o seu cancro é uma expressão metafórica de alguma coisa que fizeram mal e por isso estão a enfrentar esta situação. Acrescenta vergonha e crítica a um processo que por si só já é doloroso o suficiente.
Estás a fazer quimioterapia, que é o pesadelo da maioria das pessoas. Como estás a lidar com isso? Fazias ideia do que seria?
Enquanto respondo a esta pergunta, estou a lidar com efeitos secundários muito difíceis, por isso não me vou debruçar sobre ela. No entanto, posso dizer que ultrapasso os piores dias dizendo a mim própria que isto é o que preciso para ficar melhor. Posso fazer com que seja mais fácil? Não, claro que não. Mas sinto uma espécie de realização pessoal cada vez que saio de uma sessão de quimio. Faço o meu melhor para sobreviver, e isto é parte disso. E o meu marido diz que fico fixe de cabelo rapado, então, talvez um dia também me sinta mais confortável com essa parte!
O cancro não é uma doença solitária. Como é a relação com as pessoas que estão mais próximas de ti?
Descobri que há um lado bom ao ter cancro, que é o apoio que recebes de todos os sectores da tua vida. Ao início não estava certa se queria tornar o meu diagnóstico público, mas estou tão contente por o ter feito. Tanta energia positiva a correr na minha direção, em cada mensagem que recebo, faz-me sentir mais forte.
Quando estava saudável, percebi que tinha uma tendência para cismar com as pequenas coisas que corriam mal nas relações – (talvez seja coisa de quem escreve canções!) – do que na verdade fundamental de que há pessoas à nossa volta que nos dão valor, que nos amam, e querem que fiquemos saudáveis e floresçamos. Agora que estou doente, senti-me profundamente emocionada e encorajada pelo apoio que recebi de amigos e família.
Apoias as mulheres nas suas escolhas sobre a forma de reagir aos efeitos secundários da doença? Há quem defenda que as mulheres devem aceitar os efeitos secundários, alguns acreditam que a influência da opinião médica faz com que as mulheres escolham a reconstrução cirúrgica da mama, alguns até chegam a dizer que as mulheres escolhem a reconstrução porque têm medo da discriminação de género. Não será, somente, uma escolha pessoal que, em qualquer dos casos, não deveria servir como pau para bater nas mulheres depois do que já passaram?
Sim, acho que devemos estar atentos às posições dogmáticas que defende só um caminho para lidar com as escolhas que temos de fazer quando estamos a lutar contra o cancro da mama. São escolhas extremamente complexas que vão muito além do físico em termos de impacto para nós. Há um logo caminho a trilhar quando se fala de assuntos que dizem respeito às mulheres, e cancro. Uma coisa que não sabia quando fui diagnosticada com a doença, é que a quimio pode induzir à menopausa prematura, e grande parte das mulheres em idade fértil podem ficar inférteis. Sem me sentir totalmente preparada, optei por começar um tratamento de fertilidade antes da quimio, de forma a que no futuro tenha a oportunidade de ter filhos. As companhias de seguros nos Estados Unidos, não asseguram este procedimento avultado (não tenho a certeza se as de Portugal o fazem), e grande parte das mulheres vê-se sem opção. Dei por mim a pensar, “a preservação da fertilidade não é um direito, já que é algo que se pode fazer?”
Por último, este assunto, tal como a reconstrução mamária, resume-se a uma batalha fundamental dos direitos das mulheres, que se cruza com as questões da escolha. Quer a escolha seja pela reconstrução ou não, as mulheres devem ser livres de escolher aquilo com que se sentem melhor e serem apoiadas pelas suas comunidades, serviços de saúde e legisladores. Acabei de ver o desfile de lingerie para mulheres desenhado por uma sobrevivente. Foi verdadeiramente inspirador. É poderoso quando os sobreviventes e os artistas conseguem dar esperança e iluminar caminhos para que possamos abraçar e celebrar o nosso direito a escolher o que é melhor para nós enquanto indivíduos, e isso nunca será uma abordagem de tamanho único.
Vives nos Estados Unidos da América e essa é uma das razões que faz crescer exponencialmente o custo dos teus tratamentos. Num momento em que os termos da nossa sociedade estão a ser amplamente discutidos e que nos vemos confrontados com uma severa falta de valores e empatia e, ao mesmo tempo, como resposta, o crescendo de movimentos que defendem esses direitos, como é que te sentes perante o que está a acontecer no teu país, principalmente com o fim próximo do Obamacare, e defendes que o acesso universal a serviços de saúde é um direito humano e não um privilégio?
Nos Estados Unidos tenho trabalhado como professora, e tenho a sorte de ter cobertura para grande parte do tratamento. No entanto, como o acesso à saúde não é universal e os preços não estão regulados, há muita coisa que não está coberta e mesmo com cobertura, uma pessoa comum que esteja a enfrentar um cancro tem de lidar com uma dívida exponencial a longo prazo. É um assunto complexo e há muito para dizer sobre ele, especialmente agora, quando Trump está a tentar passar uma proposta de lei desastrosa que deixará milhões de americanos sem seguro de saúde. Pela sua visão sobre o serviço de saúde universal, e muitas outras, eu estava entusiasmada com Bernie Sanders, oferecendo uma posição sobre o que seria possível fazer, porque há outros caminhos e a Europa é prova disso.
O Obamacare foi a melhor coisa que aconteceu ao serviço de saúde americano, desde há muito tempo. A pior parte dos serviços de saúde nos Estados Unidos, antes de Obama, provém das politicas que permitiam às seguradoras cobrar prémios altíssimos ou até negar cobertura a quem tem antecedentes.
A administração Obama trabalhou arduamente para desfazer essas políticas malignas que estavam a custar às pessoas todo o seu sustento e até as suas vidas. Agora, com esta nova administração, corremos o risco de ver isso acontecer novamente. Estão a propor a ideia de os novos e saudáveis usufruírem de prémios baixos, enquanto todos os outros serão enfiados numa categoria diferente onde terão de pagar mais. Isso é discriminação, pura e simples. E não é dessa forma que os seguros devem funcionar! O ponto é: quando não tens um acesso universal a serviços de saúde, quando a saúde não é vista como um direito humano – abre as portas a todo o tipo de discriminação. Muitos americanos estão preocupados com o voto esta quinta-feira (23 de Março – até à hora da publicação a votação tinha sido adiada). Se a proposta de Trump passar, a situação vai piorar e ficar bastante mais complicada e perigosa para os doentes oncológicos e para os sobreviventes.
Quais são os teus planos? Estás a fazer alguma coisa na área da música, neste momento?
Quando me mudei para os Estados Unidos, tinha acabado de gravar o novo álbum, mas tive de colocar tudo de lado para me instalar. E isso demorou mais do que eu pensei que pudesse demorar, e depois o diagnóstico tornou-se noutro obstáculo. De qualquer forma, estou contente por dizer que estou de volta ao álbum e só falta um par de meses para estar finalizado. Ser músico é algo muito físico, e é claro que terei de aguardar até conseguir dar concertos outra vez, mas tenho esperança de pelo menos conseguir lançar estas músicas que estão à espera há tanto tempo.
Que importância dás a esta onda de solidariedade das bandas portuguesas com quem colaboraste e de todas as pessoas envolvidas nestes espetáculos?
É absolutamente fantástico. Senti-me tão inspirada quando trabalhei e dei concertos com o Frankie, a Selma, Beautify Junkyards, e os Nice Weather for Ducks. Não só são músicos incríveis, como também são pessoas incríveis. Para mim, são aquilo que faz de Portugal uma força criativa tão poderosa na música. Dá-me um propósito e determinação enquanto ultrapasso isto, saber que os meus amigos estão aí e que a música tem este poder de ajuda.
Decidiste doar 10% dos lucros do concerto a uma instituição portuguesa que trabalhe com doentes com cancro, esta troca de solidariedade é a prova de que somos todos pessoas e que as fronteiras nunca irão barrar o amor e entreajuda?
Grande parte das pessoas mais importantes da minha vida são portuguesas – o meu marido, família e amigos. A minha sobrinha, o meu sobrinho, estão a crescer aí, e eu chamei Portugal de casa por mais de cinco anos e continuo a considerar a minha casa, apesar de ter tido a necessidade de regressar aos Estados Unidos e reencontrar a minha família aqui. Muita gente está a ajudar-me e eu quero ajudar também. Espero que este concerto possa trazer uma maior consciencialização e que recolha fundos para a batalha contra o cancro em Portugal e, também, ofereça uma mensagem de prevenção. Vai fazer exames e espalha a mensagem sobre a prevenção à tua família e aos teus amigos! Iluminar algo que nos apavora é sempre melhor que deixar às escuras.