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FOQUE em entrevista: “Gosto muito de tirar o tapete ao ouvinte”

Uma entrevista cativante que nos faz mergulhar na música do artista nacional que encontrou em FOQUE a sua sonoridade, ao fazer convergir diferentes formas de arte e influências artísticas.

Cerca de quatro anos após o seu nascimento, FOQUE ,”despe-se” em Ato Isolado. É puro e cru, visceral e interventivo. Foi assim que o artista português de 25 anos, Luís Leitão, se estreou, a meados de Janeiro, no campeonato dos “longa-duração”. Este é já o seu quarto trabalho, seguindo-se a três EPs – Cabum (2017), Foque e MMM, ambos lançados em 2019.

Natural de Gondomar, o artista multifacetado, aficionado da robótica e do stand up, concluiu o curso de Interpretação da Academia Contemporânea do Espectáculo, no Porto e posteriormente frequentou, no Ensino Superior, a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. Com um profundo interesse pela língua portuguesa e pelo mundo artístico, FOQUE, aproveitou o seu primeiro álbum, para se desprender de todas as amarras e, pautado por referências como José Mário Branco e Agostinho da Silva, se expurgar, através da crítica e do desabafo, de todos os males que o atormentavam aquando da construção do seu mais recente trabalho. Este Ato Isolado é, até à data, o seu trabalho mais pessoal e ainda que o produtor não considere este um trabalho anti-sistema, a verdade é que o foi neste seu primeiro longa, já que (como se o título não fosse por si só auto-explicativo) este disco está povoado de críticas à precariedade atual do sistema capitalista, e parece guiar-se pela busca de de um propósito maior – através da partilha e empatia, procurando mostrar que “se isto não for uma festa não vale a pena, de todo, andarmos aqui a correr à procura do nada” – fazendo jus às célebres palavras do poeta Agostinho da Silva, citadas neste trabalho: “O homem não nasce para trabalhar. O homem nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.” Ato Isolado revela-se como um trabalho complexo e rico, quer pela diversidade instrumental, quer pelo aguçado trabalho lírico. Parece, assim, estar mergulhado algures na convergência da eletrónica com a arte do cantautor, com pitadas de folk e ainda com o indie. Trata-se de um trabalho interessante que oferece novas descobertas a cada audição, e que por essa razão, me parece justo dizer que deve figurar na lista dos trabalhos nacionais de 2021 a encarar de audição pronta e a ter debaixo de olho.

FOQUE mostrou-se tal como é, bem-humorado e sincero, numa conversa que não só nos dá a conhecer melhor algumas das camadas rítmicas deste seu Ato Isolado, como também alguns dos cambiantes que o compõem enquanto pessoa e artista. O resultado? Uma entrevista cativante que nos faz mergulhar na música do artista nacional que encontrou em FOQUE a sua sonoridade, ao fazer convergir diferentes formas de arte e influências artísticas.

Começando pelo início, quem é o FOQUE? É uma mistura de todas as tuas experiências e interesses ou é uma espécie de alter-ego à parte?

Eu acho que o FOQUE é um híbrido das duas questões que levantaste. É um culminar dessa bagagem toda, desde o teatro, o stand up, todas as coisas por onde já vagueei à procura do meu lugar ao sol, e é também o querer criar um projeto, mas não com o meu nome, o objetivo de FOQUE é ser uma entidade, é ser algo muito maior do que eu. E estou a começar a construí-lo aos bocadinhos, o objetivo disto é ser algo que transcende o Luís, algo para além do Luís. Até porque, e aí entra a parte do Luís, eu gosto de muita coisa diferente e então o FOQUE é esse sitio onde eu foco tudo o que faço, quer seja teatro, dança, o álbum em si, achei por bem criar uma espécie de meca onde posso armazenar tudo o que faço num só sitio, de uma forma mais asseada por assim dizer. Eu agora até vou começar, aliás, íamos começar agora em Fevereiro, a ver como corre, uma peça de teatro nova em que vou fazer música ao vivo, algo que já tenho feito, mas nesta vou também fazer trabalho de actor, algo que já não faço há uns três ou quatro anos desde que saí de Lisboa, e mesmo isso será trabalho enquanto FOQUE.  Eu penso, desde 2017, em fazer o meu primeiro álbum, até agora não tinha feito porque ainda andava à procura da minha sonoridade que não é uma coisa constante e acho que nunca será. Os trabalhos daqui para a frente também já são diferentes, mas achei mesmo que este álbum para ser feito tinha que ser feito neste tempo e nos moldes em que foi feito. A premissa para eu o fazer foi perceber o que é que eu, Luís, tenho para dizer. O que é que eu posso acrescentar? E então tive de pesar tudo na balança, olhar para trás e perceber o que têm sido estes 25 anos de vida e estes sete ou oito no mundo das artes e olhar cá para dentro e pensar o que está certo, o que está errado. E é também por isso que ele é exclusivamente em português, enquanto nos outros trabalhos havia faixas em inglês, neste achei mesmo que devia ser uma coisa mais pura, mais minha.

Neste trabalho, músicas que começam como agradáveis e bastante dançáveis até, acabam por se mutar em críticas bastante incisivas à precariedade, ao capitalismo e a todos os sentimentos negativos que ambos desencadeiam em nós. Tu, enquanto artista, e compositor, sentes que tens de te expurgar de todas essas coisas que “estão mal”?

Neste especificamente senti, senti muito. Lá está, eu comecei a compôr o álbum a meio de 2019 e acabei praticamente quando estava a pandemia a começar e foi ali o culminar de muitas situações em que de repente começo a fazer mesmo esse cálculo e a pensar que tinha obrigatoriamente que acrescentar alguma coisa. Ainda que os outros trabalhos falem por si só, este é o trabalho em que eu verdadeiramente tinha de dizer isto. Se calhar daqui para a frente, pelo menos nos próximos tempos, já não vou ter esse papel tão interventivo e tão visceral. Talvez, nos últimos tempos, tenha estado mesmo no mood de fazer essas coisas, mas agora já disse o que tinha a dizer e já estou bem com isso – também não adianta estar aqui a bater no ceguinho. Relativamente à coisa de algumas músicas serem bonitinhas e de repente haver ali um gajo a berrar, eu gosto muito dessa dicotomia de teres uma coisa bonita e de repente alguém a rasgar tudo em cima. Adoro tirar o tapete ao ouvinte, ou seja, eu faço música que gostaria de ouvir. E eu gosto que me tirem o tapete, gosto de ser surpreendido quando estou a ouvir música, apesar de haver uma música ou duas no álbum que são mais tranquilas, também tinha de ser senão tornava-se uma coisa um bocado esquizofrénica, até para manter a coesão do álbum, achei por bem acrescentar umas coisas mais tranquilas.

Na faixa “Precário” terminamos com um excerto da “FMI” do José Mário Branco in reverse. Já em “A Vida não é uma Festa”, lá pelo meio, ecoam diversas frases do poeta Agostinho da Silva, eternizadas nas suas famosas conversas – nomeadamente “Nós estamos nessa contradição não é? Nascer de graça e passar o resto da vida a tentar ganhá-la” e ainda a célebre “O homem não nasce para trabalhar. O homem nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.” Recorres a estas referências para te mostrares enquanto indivíduo e artista ou é mais do que isso? É a tua forma de dar continuidade ao trabalho interventivo, tanto de Zé Mário Branco, como de Agostinho da Silva? 

É um pouco das duas. Eu lembro-me perfeitamente da primeira vez que ouvi a “FMI” do Zé Mário Branco. Foi num dia em que estava a sair da ACE, no Porto, apanhei um autocarro para casa e o meu irmão mandou-me a música e disse “epá tens que ouvir isto”. Lembro-me que ia, sozinho, sentado naquele lugarzinho atrás do motorista. Meti os fones e aquilo deu-me um soco tão grande no peito que eu cheguei a casa – jantei e fui dormir, não falei, fiquei mesmo apático. E de cada vez que a ouço sinto o mesmo soco no peito. As conversas do Agostinho da Silva descobri já mais tarde. Mas, tanto as conversas como o música, apesar de serem coisas muito distintas, têm uma coisa que eu gosto muito que é a de sempre que eu volto a ouvir, descubro alguma coisa, e já as vi e ouvi dezenas ou centenas de vezes. E isso era uma coisa que eu queria também ter muito no álbum. E ok, o Ato Isolado pode ser um álbum simples de ouvir, mas se voltares a ouvir vais encontrar sempre alguma coisinha, um pormenor, uma textura que ainda não ouviste. Eu gosto muito disso. Adoro descobrir coisas novas a cada audição. Acima de tudo queria que fosse álbum para ouvir do início ao fim, coisa que acho que hoje em dia se está a perder muito. É uma coisa que se vai continuar a perder, felizmente ou infelizmente não sei, mas este álbum foi mesmo feito para ser de uma audição só, também foi por isso que tentei que o álbum não fosse muito longo, lá está, porque não queria que fosse maçador, queria que nos tempos que vivemos em que é tudo muito rápido, estás a acabar um single de um artista e entretanto já saíram mais três. Portanto eu queria mesmo que fosse um álbum que é possível ouvir do início ao fim, e já me aconteceu ter pessoal a dizer que já ouviu o álbum duas ou três vezes porque é isso, é meia horinha. E acho que foi o que aconteceu no lançamento dos singles que eu tinha lançado até agora – “Rapidinha” e “Ausência”, e o que aconteceu foi que eu senti que nenhum deles conseguia verdadeiramente espelhar a essência do álbum. A ausência se calhar aproximou-se mais, mas mesmo assim é complicado espelhar numa faixa todo o trabalho, neste caso, de um ano e meio.

Dos teus trabalhos, para além de este disco ser o mais colaborativo também dás uma grande importância ao timbre feminino. Porquê?

Eu até agora, nos trabalhos anteriores, fiz tudo sozinho: a criação, o arranjo, a produção, essa coisa toda. E logo à partida neste trabalho eu sabia que primeiro não conseguiria fazer sozinho nem queria. E este é o mote que começou no Ato Isolado e, aliás, a maior parte do trabalho que estou a desenvolver agora é colaborativo, já não estou a fazer nada sozinho por assim dizer, porque também já não me interessa, não quero estar fechado no quarto a fazer música, o que eu quero é estar com pessoas a fazer música e acho que na verdade o álbum, tal como eu já suspeitava, ganha muito quando tens inputs de pessoas totalmente diferentes. Tenho, por exemplo, o input do meu irmão, que é um moço que vem da música clássica e que agora transporta isso para a braguesa, tenho o input da Meta_ que vem da música quase tradicional, de raíz, do folk, temos a EVAYA que tem um projeto de música eletrónica/ambiance, temos também a Klin Klop que também faz música eletrónica e toca violino. Conto ainda com o Gonçalo Palmas que vem do rock, agora mais do funk, do groove, da soul e a ainda com o Pedro Jerónimo, um rapaz que vem do jazz, no trompete. Portanto ter esta mixórdia toda a juntar-se num sítio é brutal e acho que o álbum cresceu muito à custa disso. No caso das vozes femininas foi mesmo uma questão de eu achar que o trabalho em si já estava a ficar tão denso, pesado, bruto, tão masculino se calhar até, que achei que precisava de uma coisa doce e nada melhor do que dois ótimos seres humanos e duas ótimas artistas para dar esse toque. 

E se te dissesse que tens que escolher uma “filha pródiga” de Ato Isolado, qual é que dizias?

Não consigo! Para mim as músicas são quase como filhos e cada uma tem uma história, cada uma surgiu de um sítio diferente. Ao longo do processo fui tendo um filho que gostava mais, num mês gostava mais de uma porque era a mais recente, ou porque era a música que me estava a dar mais pica, ou porque era a que ressoava mais em mim. Se calhar consigo fazer um top 3 neste momento, mas lá está é como te disse, as eleitas vão mudando. Posso fazer um top três, mas a ordem não será um factor: a “Precário”, sem dúvida que estará lá, porque é daquelas que emocionalmente acho que é a que eu despojo mais, a “Feliz Pós Laboral” também gosto muito, não só pela música em si, mas pela história, porque a meio da música há uma transição para uma coisa diferente e aquele trecho inicial, aquela batida já estava pronta há seis meses e eu não consegui resolver a música, andava com aquilo atravessado e foi precisamente na tour europeia que fizemos com a Chau Booking no início do ano passado em Barcelona que eu decidi, na noite antes do meu concerto, ir dar uma volta à noite sozinho pela cidade e beber uns copos, obviamente, e quando voltei ao airbnb foi tipo aquela epifania que tu ouves falar nos filmes. Liguei o computador e de repente tudo aquilo surgiu e eu foi do género – “ok está fechada a música” e ficou feita assim numa hora. E se calhar fechamos este top numa bolha de dois. A “Feliz Pós Laboral” é o melhor exemplo, precisamente, de tudo o que falámos até agora, o sentimento da batida, do tal tirar o tapete. 

A parte instrumental dessa faixa é bastante interessante. Como é que foi produzida?

Foi mesmo tocado: o Gonçalo Palmas toca um pequeno solo de piano a dado momento, e o trompete também é tocado pelo Pedro Jerónimo, que é o trompetista de jazz aqui do Porto de que já tinha falado. De resto, a maior parte das coisas no álbum em si são mesmo tocadas, tudo o que é guitarras, pianos, baixos em alguns casos. Eu sempre que posso tento tocar as coisas, algumas coisas programo no computador, mas geralmente faço mais isso para a parte de percussão. Mas lá está, eu eu digo muitas vezes que o meu instrumento não é a guitarra nem o piano, o meu instrumento é o computador, eu toco o Ableton que é o programa que eu uso, há seis anos, e por isso é o “instrumento” em que eu me sinto mais versátil e confortável. Mesmo, por exemplo, na “Procrastino” a maior parte das camadas de percussão que se ouve foram também gravadas, os shakers, os reco- recos, triângulos, tentei tocar mesmo o máximo de instrumentos possível também para contribuir para o tópico da humanidade, porque quanto mais torto mais humano será, na verdade. No computador tende a ficar tudo muito quantizado, tudo muito direitinho e este álbum tenta fugir um bocadinho a isso, tenta não ser tão perfeito, queria que fosse sujo mesmo.

E já há datas e novas colaborações “à vista”?

Datas não, está muito complicado, porque como todo o trabalho que estou a desenvolver é colaborativo, cria-se logo aí o impasse de não depender só de mim. Vê-se que este ano vai sair muita música, porque toda a gente com quem eu falo me “diz opá a partir de fevereiro”. Por isso, não tenho datas. O que tenho é uma coisa que vou criar agora que passa por todos os meses soltar um single com um artista diferente, internacionais e portugueses. Estamos agora a fechar datas, já tenho muitos artistas confirmados, mas ainda não consigo pôr datas em cima da mesa nem divulgar nenhum nome. Estou a produzir o álbum de um rapper com quem já trabalhei, já tenho músicas cá fora com ele, que é o Caio a.k.a Calígula. Estamos quase a acabar e deve sair um single nos próximos tempos. Estou também a produzir um EP com a Meta_ e, para além diss,o também estou a tratar de tudo o que é produção desses tais singles. Estou ainda a começar um EP só com pessoal do hip hop português, mas quanto a isto não posso dizer mais ainda.

Como descreverias a tua música e porque é que terminas os quase 30 minutos de disco a “negar-nos festa” simultaneamente oferecendo-a?

Ai, interrompo-te já porque isso eu não consigo… Quando estava a introduzir as música nas plataformas digitais eles perguntam o género e eu “ai sei lá isto é eletrónica, é cantautor, é indie”. Opá é música, e para mim só há dois tipos de música: que são a música boa e a música má, mas até isso é subjetivo. É daquelas que eu não sei mesmo, prefiro que sejam outros, a ouvir de fora e a dizer. O meu intuito a fazer a música, “A Vida não é uma Festa” é precisamente dizer que isto é uma festa, que a vida é uma festa, porque se isto não for uma festa não vale a pena, de todo, andarmos aqui a correr à procura do nada. Se isto não for para ser uma constante festa, tudo o que eu disse até aqui podem esquecer e é mesmo por isso que que essa é a última faixa do álbum que é mesmo para dizer “pessoal está tudo dito, siga para a festa”. A única coisa que eu posso dizer quanto a este trabalho é – ouçam! Nem é pela questão do tempo que demorei a concluí-lo, é porque acho mesmo que é impossível ficar indiferente a ouvir o álbum e digo isto de um ponto de orgulho e não de arrogância, nem querendo soar convencido, é mesmo por ter orgulho no trabalho. O apelo que faço é que ouçam, porque acho que está um trabalho valioso.

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