A propósito dos 25 anos da FlorCaveira, o Altamont esteve à conversa com Tiago Cavaco, fundador da editora. Ao fim de um quarto de século, a FlorCaveira mantém-se inquieta, sempre à procura de novas oportunidades, novas histórias para contar e novas formas de fazer música.
Esta entrevista foi realizada em novembro, mas ficou na gaveta até agora – no momento em que a FlorCaveira se prepara para dar um passo importante: a internacionalização. A viagem ao Brasil servirá para organizar um festival que, como não podia deixar de ser, mistura religião e panque roque.
Altamont: Como é que tudo isto começou?
Tiago Cavaco: A história da FlorCaveira não dá para desligar da história de uma meia dúzia de miúdos, que eram parte da Igreja Baptista de Queluz e que tinham crescido juntos: eu, o Miguel, o Tiago Ramos, o Carlos, o Ricardo.
Nós, os cinco, tínhamos uma banda, que teve nomes diferentes, com pequenas diferenças na sua formação. Começou por ser Metanoia (porque a cena das palavras bíblicas, no grego ou no hebraico, é muito forte para Protestantes, para Evangélicos). Depois fomos Catacumba, depois Bible Thombs e, finalmente, já na época da universidade, em que eu já começo a intelectualizar mais, a Instituição.
Essa foi uma banda típica adolescente, em que tu sonhas. Era assim que nós nos sentíamos: “Era tão fixe se nós conseguíssemos ser músicos, viver da música”, e tal. E, claro, o que é que acontece com 90% (provavelmente, não sei se há contas feitas)? Não deu certo… Aliás, ela deu muito certo, mas, obviamente, chegou ali a 1999. Esta banda tinha começado em 1993 e tinha acompanhado o final da nossa adolescência, tempo do liceu e da universidade.
Em 1999, estávamos a arranjar namoradas, começaríamos a casar daí a 1 ou 2 anos, e, nessa altura, de facto, já estávamos um pouco cansados da banda. Mas, ao mesmo tempo, havia o desejo – da minha parte e de todos – de: “Epá, nós nunca vamos conseguir deixar de fazer música”. Nem é que isto fosse propriamente expresso verbalmente, mas é aquela coisa: a música é a nossa vida, é uma paixão que não conseguimos resistir.
E, nessa altura, em 99, quando a banda principal – a Instituição – estava prestes a terminar, havia uma cena a acontecer: uma espécie de regresso a um rock mais cru, com bandas como os White Stripes, os Strokes. E havia editoras que nos chegavam aos ouvidos através duma revista, que era a Mondo Bizarre, para quem andava ali no circuito do centro comercial Portugália e algumas lojas no Bairro Alto.
Portanto, havia assim uma espécie de regresso a um certo espírito “Do It Yourself”, que já nos tinha acompanhado no início da banda, porque nós já tínhamos entrado na cena punk em 93. Havia uma editora em particular, que era a Estrus Records, e depois havia a editora do Tim Armstrong dos Rancid, que era a Hellcat Records, que ainda hoje existe. Havia uma cena interessante e nós pensávamos: “Olha, a banda até pode acabar, mas podemos criar uma editora onde vamos gravando as nossas cenas.”
Nessa altura, comecei a interessar-me em gravar canções a solo e, portanto, pensámos: “Vamos criar uma editora, porque assim dá para, quando quisermos fazer discos a solo, mais calmos, mas também dá para fazermos as nossas bandas mais punk, continuarmos a inventar bandas.” E foi assim que nasceu a FlorCaveira, como um projeto de: “Mesmo que o sucesso de uma banda da adolescência não tenha dado certo, pelo menos vamos gravando os nossos discos.” O grupo de pessoas que ouviria era muito curto, naturalmente, íamos tentando arranjar uns concertos – lembro-me que, na altura, era a Sociedade Guilherme Cossul – um ou outro concerto, eu a solo, o Sami (Samuel Úria) a solo.
Éramos perfeitamente desconhecidos fora do grupo que nos seguia, até mais no contexto Evangélico, mas também depois algumas coisas que aconteciam no contexto do mIRC, na internet. Havia alguns canais, como o Pumpkin Garage, naquela altura, em que uma banda que nós criámos – que é, de certa maneira, a banda fundadora da FlorCaveira – que é o Guel, o Guillul e o Comboio Fantasma.
Então, foi assim uma espécie de renovação, numa altura de final de ciclo, tentando sobreviver a um final de ciclo que se transmutou… Vamos criar uma editora. Religião e punk rock!

Altamont: Uma das coisas que a FlorCaveira trouxe foi cantar em português, quando a maior parte das bandas dos anos 90 cantavam em inglês. Foi realmente uma vontade de quebrar isto, ou foi uma coisa que aconteceu e depois se tornou numa bandeira vossa?
Tiago Cavaco: Aí, era de facto uma bandeira. Uma das coisas interessantes que me aconteceu no meu percurso… eu formei-me na FCSH, entrei em 1995/96. Lembro-me quando o PS ganhou uma Associação de Estudantes, e o pessoal do PS foi acusado de ser fascista, o que mostra o quão à esquerda a FCSH era. Quando eu entrei, também me considerava um jovem de esquerda, muito daquela cultura. Eu sou do tempo do PSR, nem era Bloco de Esquerda, aquele tipo de linguagem provocadora, manifesto…
A FlorCaveira começa com um manifesto, que tinha uma linguagem muito à PSR, não porque nos considerávamos de esquerda – nessa altura, eu já estava a fazer um percurso de uma certa… brincamos um pouco, mas de sair do armário, porque tinha-me apercebido que tinha levado ali uma lavagem do caneco na Nova.
Mas é verdade que a única coisa que eu diria que é ideológica, from day one, no que diz respeito à FlorCaveira, mesmo tendo em conta que o slogan era suficientemente provocador, mas também com algum humor, era a ideia de cantar em português. Para nós, isso era fundamental. E aí, com uma linguagem muito herdada dos manifestos do PSR, podia até ser considerado uma causa algo reaccionária – porque a maior parte das bandas cantavam em inglês na altura – mas, para nós, era de facto, se havia credo na FlorCaveira, esse era uma parte fundamental do credo. Era a ideia de que nós sempre achámos como uma fuga – e deixa-me até usar novamente uma linguagem quase à Nova – um aburguesamento: a ideia de tu escolheres a língua, quase a língua do império, quando nós temos a língua que temos.
Repara, nem é necessariamente uma questão de patriotismo, porque, nesse sentido, eu acho que a FlorCaveira nunca foi propriamente patriota – até porque o protestante em Portugal nunca é um patriota, porque nós somos sempre desaportuguesados, porque a nossa cultura, a cultura protestante, não encaixa aqui. Portanto, não era uma questão de “Ahh Portugal, Deus Pátria e Família”. Não, isso nunca nos disse nada. Nós não encaixamos nesse mundo.
Mas é verdade que a língua, em particular, tem muito a ver com a centralidade da palavra, que eu hoje percebo melhor ser um valor altamente protestante.
Mas fiquei com a ideia de que a palavra é o mais importante. Nós temos de falar numa língua que seja a nossa língua, que não seja a língua do império, não vamos ser uma colónia do império, nesse sentido. E depois, os nossos heróis, também por mau feitio da nossa parte – pelo menos, reconheço, da minha – que era… a música que era feita não nos dizia nada. E algumas destas pessoas, nós até fomos conhecendo ao longo do tempo, porque o meio português é tão pequeno que vais-te esbarrar com as pessoas.
Mas, por exemplo, aquilo era o tempo dos Silence 4, dos Belle Chase Hotel, tempo de gente muito simpática, mas aquilo não nos dizia nada, nada. E, claro, havia aí uma certa idealização, porque geralmente os teus heróis nunca podem ser os heróis do momento. Se forem os heróis do momento, tu és igual a toda a gente. Mas, se forem os heróis de há 10 anos ou há 20 anos, quando já foram esquecidos, “Ah, eu gosto dele”.
E os nossos heróis, nesse aspecto, eram mais o Pedro Ayres de Magalhães, os Heróis do Mar, os GNR da primeira década. Portanto, nós gostávamos de dizer: “Epá, a música portuguesa não vale nada, o melhor aconteceu há mais de 10 anos.” E era uma maneira de também construirmos uma certa estética desencaixada, assumidamente desencaixada, mas também de nos diferenciarmos dos outros.
Portanto, o português, de facto, nesse sentido, era a coisa mais ideológica que a FlorCaveira tinha. Diria até mais do que a questão da religião, que era uma coisa da qual nós nunca fugimos. Não tínhamos vergonha de assumir que vínhamos de igrejas evangélicas, mas nunca foi panfletário para nós: “Agora temos de transmitir mensagens cristãs.” Nunca houve propriamente essa preocupação, ao passo que o português era uma questão ideológica.

Altamont: Imaginem que vocês não se tinham conhecido, ou melhor, imagina que não eram evangélicos. Achas que conseguiam à mesma ter um grupo, fazer música? Como é que será que iria ser a música? Porque eu, às vezes, estou a ouvir os louvores da Igreja da Lapa e penso: “Isto parece uma canção do Samuel Úria”. No outro dia, o Miguel estava a tocar uma coisa no órgão e pensei: “Isto é o Poslúdio do Samuel Úria”.
Tiago Cavaco: O que tu estás a dizer faz todo o sentido e, também, a idade vai ajudando. À medida que ficamos mais velhos, para nós, é dos melhores elogios que podemos receber. Quando és miúdo, pelo menos a minha experiência foi um pouco assim: de certo modo, tu não estás descansado enquanto não fazes uma coisa que julgas que só tu a podes fazer.
Mesmo essa idealização da autenticidade e da criatividade, eu acho que, à medida que vamos, idealmente, amadurecendo, vais aceitando melhor que és o produto de tudo aquilo que veio antes de ti, e também és o produto das circunstâncias. Portanto, acho que nós começamos a aceitar melhor o facto de fazermos parte de uma comunidade, de circunstâncias, de eventos, de pessoas, da história, de tudo.
Portanto, quando tu dizes isso, para mim hoje é das melhores coisas que posso ouvir! Se tu disseres: “Eu acho que a música da FlorCaveira, independentemente de ser do Sami, do Miguel, seja de quem for, é muito parecida com aquilo que eu ouço na Igreja”, isso significa que na minha música podem estar os meus pais, pode estar o meu avô, e isso hoje comove-me muito mais do que “Ai, não, só quero estar eu, quando ouves a minha música só me podes ouvir a mim.”
A tua pergunta é muito boa e eu não sei se sei responder com toda a eficácia, porque, por um lado, eu acho que se as circunstâncias não tivessem sido estas, o resultado também não seria exactamente o mesmo. Há uma coisa que eu me fui apercebendo à medida que fui conhecendo mais músicos, que é uma coisa que a igreja nos deu e que eu julgava que era assim para todas as bandas – independentemente de serem bandas de miúdos que não vinham da igreja.
Eu tinha a ideia de que todas as bandas eram um pouco como as nossas bandas na igreja, bandas de amigos. E, à medida que fui conhecendo e que a FlorCaveira foi lidando com mais pessoas fora do seu meio, apercebi-me que há muitas bandas em que as pessoas não são amigas – não quer dizer que sejam inimigas, mas de facto, é uma profissão. E não é um reflexo da história que eu tive com os meus amigos. Isso fez-me perceber: “Uau, eu julgava que ter uma banda, em que as pessoas eram os melhores amigos, e estão juntos, e é aquela coisa assim romântica”. E fui-me apercebendo que não. Mesmo até no contexto da FlorCaveira, alguns dos discos que foram gravados, algumas das bandas que existiram, às vezes, havia um casamento de conveniência – o que não é uma coisa má.
Mas eu apercebi-me que a nossa história é mesmo a nossa história: miúdos de Queluz que crescem juntos na igreja, que ouvem o mesmo tipo de música juntos, que sonham juntos.
Há um aspecto até interessante. Este é um elogio que acho que precisa ser feito: por exemplo, o Sami é hoje o músico da FlorCaveira, provavelmente o único profissional, que vive mais naquilo que se convencionou chamar música profissional. E muitas vezes é fácil olhar para ele e dizer: “Pois, o Sami, nesse aspecto, sendo profissional, tem de se adequar às circunstâncias profissionais.” Mas uma das coisas que ele soube manter na banda, com muito esforço dele, é que ele tenta ao máximo que a banda dele continue a ser aquilo que foi desde o início: com os seus amigos. E eu, que o conheço, sei que isso é para ele uma espécie de lealdade ao grupo, que às vezes pode passar despercebido se as pessoas não conhecerem as circunstâncias, mas que é uma coisa bonita.
E isso tem muito a ver com essa circunstância específica. Se nós não tivéssemos crescido juntos, acho que a FlorCaveira não teria acontecido, pelo menos da maneira como aconteceu.
Altamont: FlorCaveira não existiria se não fosse pelas circunstâncias que a moldaram…
Tiago Cavaco: O que podia ter acontecido — aliás, também não quero dar-te uma visão providencialista da história, isto tinha de acontecer assim, quase uma predestinação divina — mas eu acredito que outras coisas semelhantes aconteceriam. Portanto, não tenho uma visão da História de coisas muito inesperadas e únicas a acontecer. Eu acho que, provavelmente, o que aconteceria com um Portugal que, para todos os efeitos, mudou, mais democrático, é que, por exemplo, minorias religiosas como nós, Protestantes, dentro delas, alguém haveria de se evidenciar mais, vingando uma certa tradição musical que é muito forte. Portanto, talvez não acontecesse a FlorCaveira agora, mas acontecesse uma coisa parecida daqui a uns anos, ou em circunstâncias semelhantes.
A FlorCaveira tem vários projetos. Nunca temeram o risco de serem vistos como repetitivos, com a mesma música e as mesmas letras?
Se esse medo foi sentido, foi numa segunda fase, mais inesperada, que é quando as pessoas nos acharam graça, a uma escala maior. Porque, quando começámos, como éramos uma coisa tão localizada e tão pouco conhecida, era o que era.
Por exemplo, como é que os Ninivitas nascem? Eu gravo um primeiro disco a solo naquela fase na Nova, em que eu ouvia as recolhas do Giacometti, e o início da FlorCaveira tem muito a ver com isso. Nós éramos auto-Giacomettis, uma maneira de tentar enganar a falta de sucesso que tínhamos, mas que era gravarmo-nos como se fosse o Giacometti a ir para o Alentejo profundo gravar ceifeiras. O primeiro disco do Sami, Caminho Ferroviário Estreito, eu diria que é aí que se nota mais, porque eu estava a gravar o Sami onde ele vivia, em Coimbra, mas depois gravava-o no meu carro. E, portanto, aquilo era isso. Quando nós começamos, esses primeiros discos eram algo experimentais, experiências nossas, também muito influenciados pelo Tom Waits, com aquela mentalidade de “nós podemos gravar como quisermos, ninguém ouve”.
Quando íamos tocar a solo, eu e o Sami éramos completamente desconhecidos, então pensámos: “Em vez de estarmos a fazer a primeira parte e o outro a segunda, mais vale juntarmos as nossas canções e, já que estamos sempre a pedir ao Miguel, ao Silas, ao Filipe para tocar, vamos dar nome a uma banda.” E foi assim que a banda passou a chamar-se Ninivitas. Havia, na altura, aquele sucesso dos Tribalistas, que nós achávamos alguma graça, e “Ninivitas” soa estranho — quem não lê a Bíblia não percebe. Também éramos influenciados por bandas como os The Band, e nós pensávamos: “Esta mistura tem uma certa graça.” E, verdade seja dita, sem falsa modéstia, os Ninivitas, ao vivo, sempre foram uma coisa muito flexível, porque tanto fazíamos a coisa quase mais filarmónica e acústica — chegámos até a tocar em cafés — como nos adaptávamos para fazer coisas mais elétricas. No início, houve uma convergência entre eu e o Sami nos Ninivitas, mas depois eu fui gravando discos que me apetecia fazer, às vezes mais punk rock, como o Leproso que Agradece, e voltava a formar uma banda mais punk.
No ano em que a minha Maria nasceu, em 2004, gravei o Tiago Guillul quer ser o Leproso que Agradece, e nessa altura estava a ouvir muito Ramones outra vez. O disco tem apenas 15 minutos, e algumas canções até vêm de fados, da fase em que tentei fazer fados, que eram coisas um pouco estranhas. E eu disse ao Sami: “Eu gravei um disco punk, tu vais ter de inventar um disco punk também.” E foi assim que ele criou Samuel Úria e as Velhas Glórias.
De repente, começámos a dar concertos novamente no circuito mais punk. Aparecia eu e o Sami, ele com as Velhas Glórias e eu, na altura, usava o nome das Borboletas Borbulhas, que era um dos projetos punk que eu também tinha. Era normal, nós não tínhamos qualquer receio, porque era só isso que existia.
O que nós não estávamos à espera é que, a partir de 2007, ou mais especificamente a partir de 2006, o MySpace começasse a colocar-nos em contacto com outras bandas. Foi então que começámos a perceber que havia “uma cena”, no sentido de que existiam outras bandas com a mesma mentalidade, como os Manuel Fúria, os Feromona, e percebemos que havia cenas parecidas com a nossa. O MySpace teve um efeito inacreditável, que foi a democratização total da cena musical. Ou seja, até os Metallica tinham uma página no MySpace, com um ícone igual ao nosso.
Ok, eles eram os Metallica e nós éramos os Gratos Leprosos, mas no MySpace valíamos o mesmo. E essa foi uma das coisas mais interessantes que o efeito de democratização que a internet trouxe, naquela altura do MySpace, nos proporcionou: a ideia de que estávamos todos no mesmo campeonato.
O que nós não estávamos à espera é que uma das bandas da nova geração, que era um pouco mais nova do que nós, chamasse a atenção: os Pontos Negros. Então, o que acontece é que, a partir de 2007, até a Universal entrar na jogada, contratando os Pontos Negros, de repente nasce uma história na comunicação social: “Há aqui uma cena de uns tipos que fazem música nas Igrejas Evangélicas, ensaiam lá, cantam em português, e isto é engraçado”. Os Pontos Negros eram mais fáceis de digerir – até porque não eram tão selvagens como nós – já tinham a escola dos Strokes, que eram, por um lado, mais pop também, não tão desbragados, e, de repente, as pessoas começam a se embelezar com eles.
E aí percebem: “Espera aí, mas há aqui uma editora”. E, sobretudo, entre 2007 e 2008, é a altura do IV, o disco do Sami, o EP Em Bruto. Já tínhamos ficado amigos do Fúria, e o Fúria também lança o seu EP, o [João] Coração grava o disco dele, o [B] Fachada grava para nós. Portanto, em 2008, aquele grupo que era meia dúzia passa a ser uma dúzia.
E, deixa-me dizer, com o tempo a passar, a pessoa consegue olhar retrospectivamente: é de facto uma época incrível. Porque, se fores a ver aquilo que estava a acontecer, com um grupo de uma dúzia, e depois bem fotografados pela Vera Marmelo, que nos seguia, ela era pouco conhecida na altura… o conhecimento da Vera não depende da FlorCaveira, porque ela já estava com o pessoal do Barreiro e fazia essas coisas, mas a verdade é que a cena da FlorCaveira, ao tornar-se uma história de imprensa para um país pequeno, e uma imprensa pequena, de repente levou muita gente atrás.
E tu vias as fotografias, todos nós armados em campeões e não sei quê, e as pessoas olhavam para os Pontos Negros e pensavam: “Ok, estes são os que são mais fáceis de ouvir, tipo Strokes ou Arctic Monkeys. Depois olhavam para o Guillul e pensavam: ‘Isto é estranho, ainda por cima o gajo é pastor’. Olhavam para o Samuel Úria e diziam: ‘Este é meio baladeiro, as músicas são mais fáceis de entrar’. Depois olhavam para o Fachada e pensavam: ‘É mesmo um gajo da Nova, esquerda cínica’, mas depois viam o Jorge Cruz – que alguns se lembravam pelos Super Ego, ainda dos anos 90 – e diziam: ‘Mas está junto com eles?’
Depois olhavam para o Fúria e pensavam: “Este é meio católico, e traz uma cena meio Heróis do Mar, e está a começar a própria label dele”. Epá, aquilo de facto era cada tiro, cada melro. E, portanto, a partir daí, o medo, de certa maneira, desaparece, porque tudo rebenta entre 2007 e 2010. Mais tarde, é que volta esse medo, mas aí eu acho que a vantagem… Houve muitos períodos pessoais para mim, uma espécie de crise “E agora? E agora?”, até porque, em 2010, tive de tomar uma decisão sobre o que era mais importante para a minha vida, se era a música ou a Igreja, e optei pela Igreja, mas não consegui deixar de fazer música. A vantagem da FlorCaveira hoje é que ela já assume a sua decadência. E por que é que eu digo que isso é uma vantagem? Porque olhamos para trás e agora vemos tudo o que está na berra e dizemos: “Esperem, também vos vai acontecer”. E, portanto, hoje podemos ser apenas aquilo que somos.
Que hoje, se tu fores ver, eu tenho a ideia de que as pessoas pensam: “A FlorCaveira é o Tiago a gravar os discos dele, agora com um título assim, outro assado, 90% é o Tiago e os seus desdobramentos, que ninguém consegue seguir, é demasiado.”
Depois há o Sami, que mantém a loja aberta, e a continuidade do respeito é dada por ele. Há também coisas novas que vão aparecendo, como, por exemplo, agora temos a nossa primeira banda brasileira e vamos fazer um festival em São Paulo em março. De facto, o engraçado é que quanto mais nos aposentamos em Portugal, mais nos reinventamos – seja para fazer roupa, eventos, sermos, de facto, uma empresa e ganhar uma nova vida, sobretudo no Brasil. Portanto, acho que vamos aceitando. Aceitar o tempo e a nossa vantagem, especialmente nos últimos anos, é saber que, no contexto pequeno de Portugal, o nosso tempo já passou. Mas aceitar isso, acho que é importante, porque não é pelo facto de a maior parte das pessoas deixar de te atribuir importância que a tua importância acaba. Significa que a tua importância já não entra no campeonato da multidão, então a pessoa vai aceitando e vai vivendo, já com uma ideia mais realista acerca de onde chega, do que pode fazer, vai aceitando o corpo que tem, a saúde que tem e, de certa maneira, ganha mais prazer porque, ao despedir-se de algumas ilusões, encontra mais prazer.

Uma das perguntas que eu tinha aqui era se ainda havia lugar para a FlorCaveira na música nacional…
Tiago Cavaco: Por exemplo, este ano, com os 25 anos, há muitos discos nossos que ainda não chegaram ao digital. Quando fizemos os 20 anos, editámos 20 discos do catálogo antigo que não tinham sido lançados, portanto, ainda há muita coisa do nosso catálogo que precisa ser recuperada. Hoje, como ouvimos tudo no digital, temos que fazer essas coisas vingar. Depois, há novos projetos, coisas diferentes. A FlorCaveira hoje é uma editora discográfica, mas, para todos os efeitos, é uma empresa, e há várias coisas que queremos fazer. Há projetos de documentários, filmes, roupas, coisas que nascem no Brasil, num contexto completamente diferente. Se me perguntares, a FlorCaveira nunca teve tanta ambição como tem hoje.
Agora, é a ambição da vida de uma editora discográfica que já não é só uma editora. E depois também nos agrada, e há aqui um nome que é muito importante para nós. Falei-te do Sami, mas o Manuel Fúria, que está connosco, também representa uma afirmação que, não tendo tanto alcance como o Sami, continua… Onde ele deixa as suas pegadas é aqui, em Portugal. Portanto, acreditamos que há um espaço que pode e deve ser expandido, até com a geração dos nossos filhos. A vantagem também é que, muitas vezes, temos que aprender a aceitar. Vou-te dar um exemplo que até nem é da FlorCaveira.
Fui ao concerto do Nick Cave, e o mais engraçado foi perceber que a maioria da audiência era pessoal da minha idade e mais velho. Não vou dizer que não havia gente mais nova, mas a maioria eram quarentões e cinquentões. Também temos direito, não é só levarmos os nossos filhos ao Pavilhão Atlântico para ver o Travis Scott, como eu tive de fazer. Mas o que quero dizer é que aceitar isso é importante. O que não significa que, quando olhas para a geração dos teus filhos, eles querem lá saber do Nick Cave. Talvez um dia o queiram, mas por agora, ele não diz nada a eles. Isso não impede que o Nick Cave continue a sua carreira e a tocar as suas músicas. Portanto, a aceitação dos tempos e das estações da vida é muito importante. A FlorCaveira, eu acho que a vantagem que tem, como editora mais velha, é que pede a Deus para nos ajudar a aceitar a estação em que estamos, e nunca se sabe quais as surpresas que podem aparecer.
Altamont: Tu falaste do Fúria, que é católico, mas o Fachada, não tem nada a ver com religião e punk rock….
Tiago Cavaco: Tinha a ver com a atitude do punk rock, no sentido em que, quando conhecemos o Fachada, ele já estava a gravar discos com o Walter Benjamin, que gravava para a editora do Tiago Sousa [Merzbau], e vinha do punk como nós. Mas, nos últimos anos, ele dedicou-se ao piano. O Fachada já cantava em português com eles, era um miúdo, um bocado mais novo do que eu, mas também da Nova, e tinha aquela postura, que a FlorCaveira tinha, de provocação. Quando nos conhecemos, houve um casamento imediato. Claro que a religião não assistia, mas ele compreendia… Acho que a nossa empatia também tem a ver com tudo aquilo que na nossa religião, não sendo a dele — até porque ele não tem fé — mas que era uma razão para partirmos em desvantagem e termos de fazer uma afirmação. A maior parte das pessoas dizia: “É melhor não falares muito de religião, isso vai alienar algumas pessoas”. Então, vais largando tudo aquilo que aliena, queres agradar ao público.
A escola do Fachada, nesse aspecto, não é diferente da FlorCaveira, onde ele encontrou casa. É: as desvantagens que ele assume para que aquilo que ele faz seja, de facto, não só diferente, mas tenha um caráter. E ainda hoje isso é engraçado, mesmo considerando que o Fachada virou um pouco o “Tio da cena independente” em Portugal e tenha hoje uma figura quase tutelar, até em relação à Cafetra e tudo isso. A verdade é que tu percebes que o Fachada não quer partir de um ponto de facilidade em relação aos ouvintes. E só aí, nós tínhamos muito em comum: não só ele tinha interesse na FlorCaveira, como a FlorCaveira tinha interesse nele. Isto não durou muito tempo, foi entre 2008 e 2009, mas fez todo o sentido. E uma das coisas bonitas — eu já não encontro o Fachada desde 2018, foi num concerto dos 10 anos — para mim é especial, quando encontro o Fachada ou encontro o Benjamim, ou seja quem for, olhar para trás. Por um lado, não resisto a um certo saudosismo, mas para mim é uma benção real pensar que tenho uma história com alguns dos músicos mais interessantes que o nosso país tem.
O nosso país é pequeno, se fosse maior seria mais difícil cruzar-me com essas pessoas, e os caminhos que eles fazem são consistentes. Por exemplo, eu sou vidrado no Cruz, tenho uma paixão pelo Cruz, nós somos muito amigos, eu e o Cruz, é um bromance muito forte. Quando penso no Jorge e vejo os discos que ele grava… Até outro que nunca foi da FlorCaveira, que ao início, eu, armado em parvo, sempre a provocar, meti-me com ele e que hoje olho para ele com uma admiração muito grande, mesmo tendo em conta que a música que nós fazemos é muito diferente, o Tiago Bettencourt. Hoje, quando penso em pessoas que fazem música e vivem da música, não é fácil… Ser músico em Portugal é uma treta do caneco. Eu nunca vivi fora, mas passei quase meio ano nos Estados Unidos e uma coisa que eu acho graça: os músicos que têm mais sucesso em Portugal são uns pelintras, não são ricos, só são ricos para a nossa pequenez. Eu, quando olho para eles, e aparecem nos cartazes e enchem coliseus, mas a diferença… Imagina um músico bem-sucedido nos Estados Unidos. Eles, que são bem-sucedidos em Portugal, ainda assim estão mais próximos de mim, que não vivo da música, do que estão dos seus congéneres lá. Portanto, em Portugal, tu tens assim umas noites em que as pessoas acreditam que tu és uma coisa, mas não és nada.
Olho para os mais ricos e mais bem-sucedidos em Portugal e tenho pena deles, porque, de facto, sei que eles não ganham muito dinheiro, nem sequer conseguem comprar uma casa. Olho para a vida que eles têm, depois têm de andar aí a pagar portagens aos festivais de Verão, para lançar os discos na altura certa, para fazerem os cine-teatros nas alturas certas… É uma vida de funcionários públicos. Eu, nesse aspecto, tenho muita admiração por eles, que continuam a fazer isto, tendo em conta que tiram tão pouco proveito.
Altamont: Falaste aí do Benjamim, Tiago Bettencourt, há algum artista que tu gostasses que fizesse parte da FlorCaveira?
Tiago Cavaco: Muitos… sei lá, não ultimamente, porque depois eles ficaram muito focados nas causas ambientalistas, mas os Mão Morta para mim são uma referência muito grande. Tantos artistas, mesmo… Houve uma fase da Cristina Branco, com o Post Scriptum, que era um disco que nós ouvíamos muito. Era um disco que eu tinha sonhado na minha cabeça, mas já não vamos a tempo, até por causa de uma música em particular, a “Glória do Mundo” dos Heróis do Mar, que eu sempre que ouvia pensava: “o cantor disto, cançonetista nacional para esta canção, seria o Marco Paulo”. Eu e o Sami tínhamos um sonho em que fazíamos músicas para o Marco Paulo e íamos gravá-lo um bocado à Pulp, que é uma banda muito importante para mim.
Um disco assim, feito para o Marco Paulo, que nós sempre achámos, “isto é FlorCaveira”. Há muita coisa em Portugal que eu ouço e penso: “Uau, isto eu gostava que fosse da FlorCaveira”. Se pensar em nomes recentes, houve pessoal que nós convidámos a determinada altura e já não tinham interesse. Foi quando eu me fui apercebendo de que a FlorCaveira já passou. O [Luís] Severo, até o [Filipe] Sambado, houve pessoal que eu disse: “Epá, porque é que não gravas para a FlorCaveira?”. Eles já estavam noutra, nós já éramos “has-beens”, já tínhamos sido ultrapassados. Mas há sempre coisas engraçadas que, às vezes, aparecem, como o [Allen] Halloween. Há coisas que eu acho que teriam muito a ver com o espírito.
Mas pronto, também reconheço que foi numa fase em que a FlorCaveira, de certa maneira, ainda tinha um certo capital social que podia atrair. Hoje, não faria sentido, esses músicos, até porque já não sabem o que é. Por exemplo, uma coisa engraçada: quando nós começámos a vender t-shirts nos últimos tempos, quem compra mais t-shirts é a geração dos nossos filhos, que, curiosamente, não sabem o que é a FlorCaveira, mas quando veem “religião e punk rock”, acham graça.
Eu sei que isso acontece porque a minha Maria, que está na FLUL, volta e meia diz que viu um miúdo com uma t-shirt da FlorCaveira na faculdade. E eu fico a pensar que, em 2024, um puto usar uma t-shirt da FlorCaveira é uma cena já… as pessoas ficam “o que é isso?”, não têm ideia. Já tem o valor de ser uma cena desconhecida, já usas pelo statement, porque a maior parte das pessoas não vai saber o que aquilo quer dizer. E isso também tem uma certa piada para mim. Hoje, ser uma coisa que não é conhecida e precisa ser explicada, e que os miúdos precisam de ir ao Google, depois, quando entram no buraco do coelho, descobrem uma cena que não tinham ideia. Isso tem acontecido, ainda mais no Brasil. No Brasil, é ainda mais bizarro, porque é um mundo diferente. Então, miúdos brasileiros de 20 e poucos anos que mergulham na FlorCaveira e começam a devorar aquilo tudo, é sempre um fenómeno que me abençoa bastante e que me faz pensar: “Há aqui vidas interessantes que a FlorCaveira tem para fazer”.
Altamont: Recentemente, os Pontos Negros reuniram-se para um concerto. Há outras coisas a acontecer nos próximos tempos?
Tiago Cavaco: Sim, e tivemos em 2022 essa residência na Escola do Largo, no Chiado, chamada Línguas de Fogo. Foi uma experiência com uma certa simplicidade, num ambiente mais familiar. No verão, até fizemos uma sardinhada, foi muito bonito para nós, porque deu para dar espaço às coisas da FlorCaveira e aos meus desdobramentos todos. Também foi uma oportunidade para celebrar a Coluna Infame, o blog do [Pedro] Mexia, [Pedro] Lomba e João Pereira Coutinho. Deu para trazer pessoal, como o Miguel Arsénio, e também o Éme, ainda antes de lançar o disco. Foi um momento para fazer coisas bonitas e queremos voltar a fazer em 2025.
A ideia é retomar os concertos, não só com o relançamento dos discos antigos para celebrar os 25 anos, mas também, eventualmente, voltar a fazer a Consoada. Há muitas coisas que queremos fazer, sobretudo tendo em conta que este festival em São Paulo, a 7 e 8 de Março, também é algo de muita importância para nós, porque é do outro lado do mundo, em um ambiente totalmente diferente.
Portanto, é um ano em que queremos fazer a festa em grande, com discos novos. O Úria lançou em Dezembro, o Fúria também vai ter disco novo, e eu estou sempre a gravar coisas. Há muita coisa que estamos a planear, que vai acontecer, e o futuro continua.
Altamont: E o futuro distante, por exemplo – os 50 anos da FlorCaveira – serão com o Caleb (filho mais novo de Tiago) , que já está integrado na música?
Tiago Cavaco: O Caleb pode passar por uma fase em que diz: “Não quero ter nada a ver com o meu pai, a música do meu pai é careta e não quero estar na editora dele”. Por enquanto… ele tem uma coisa engraçada, que é a falta de controlo. Sai um bocado ao pai, está sempre a gravar. Isto, dizer que se é fã do filho é um cliché, mas eu de facto sou fã do meu filho. Ele faz aquilo de uma maneira estranha e gosto do facto de ele não ter vergonha de ser bizarro, de assumir isso.
Daqui a 25 anos eu não sei se vou andar cá ainda. Eu gostava que, nos próximos anos – e há ideia disso – sobretudo, entrássemos mais nos filmes, porque é uma coisa que queremos fazer: documentários e coisas assim. As canções que nós fazemos vêm muito, até, do princípio cristão para nós, que é ter uma história para contar. Eu acho que, quando a pessoa é cristã, ela acredita no poder da salvação de uma história, que para todos os efeitos, é a história de Jesus. Portanto, quando tu te encontras salvo por uma história, idealmente valorizas histórias. Também é por isso que canções são feitas. Não estou a dizer que todas as canções são histórias contadas, mas uma boa parte delas é – e também é por isso que livros são escritos.
A FlorCaveira já edita livros também e os filmes também estão relacionados com isso. Portanto, há muita ideia que nós temos e que, hoje – também como estamos mais velhos – é mais fácil de concretizar, porque conhecemos muita gente. Por exemplo, há um documentário que eu estou a mobilizar-me com o Hugo Moura para começarmos a gravar em breve, e que eu gostava que fosse um filme que pudesse ser visto em qualquer contexto.
A FlorCaveira é esse lugar. A FlorCaveira é uma casa, sem dúvida. Começou por ser uma editora discográfica, mas sobretudo é uma casa de ideias, de pessoas que, de facto, se encontram nessa mistura um pouco improvável de religião e punk rock. Quando há uma mistura improvável, eu acho que há fertilidade que sai dessas misturas.
Eu acredito, acho que o futuro da FlorCaveira tem mais hoje… necessariamente precisa de se emancipar apenas do seu passado. Eu posso confessar que, em determinadas alturas, para mim, eu não conseguia ver futuro além de tentar reacender o melhor que tinha acontecido no passado. Hoje, eu grito: “Calma, deixa o passado ser o passado, há aqui coisas novas para fazer. Se não são as mesmas pessoas a ouvir, não há problema, são pessoas novas.”
Talvez não seja tanto em Portugal, não há problema. Há o Brasil, há outros países de língua portuguesa, há outros amigos que nós fomos fazendo. E, portanto, enquanto houver religião e punk rock, enquanto houver amigos – e inimigos também, porque os inimigos são muito importantes, pois também te ajudam a dizer: “Não vou por ali, o meu caminho é outro” – eu acho que a FlorCaveira tem muito futuro pela frente.