No seu terceiro registo com banda, Sam Shepherd assume por inteiro esta nova faceta do seu projeto Floating Points e surpreende com o belíssimo álbum-filme Reflections–Mojave Desert.
O som vivo do deserto invade-nos. Com uma respiração indutora de transcendência, esse sopro lento e ancestral vai preenchendo o ar dos nossos alvéolos e, lentamente, caímos no seu encanto: sem nos apercebermos voámos até às paisagens imensas do deserto Mojave. Ouvimos o vento a passar pelos desfiladeiros e pelas ravinas, pelos montes e pelas planícies; o ar sopra contra as rochas numa dança tão antiga como a idade que a Terra tem. Nos interstícios entre os sedimentos que as compõem, essas rochas guardam histórias, mitos e lendas cuja verdade só elas conhecem.
Enquanto esta imagem se vai pintando na nossa cabeça durante a primeira parte de “Mojave Desert” – quase exclusivamente composta por field recordings do deserto –, a pouco e pouco, os sintetizadores e feedbacks alienígenas que se ouvem fazem parecer que está a aterrar naquela bela paisagem desolada um disco voador com seres do outro mundo. No entanto, quem vem a bordo desta nave é Sam Shepherd e companhia: os Floating Points. Ao mesmo tempo que nos introduzem à presença da banda naquele cenário, estes sons – sobretudo, o seu eco e reverberação naturais –, dão-nos conta da vastidão do local em que se encontram.
Depois da contextualização espacial de Reflections – Mojave Desert – algo importante para quem não tiver hipótese de ver o filme (*) para o qual este registo é banda sonora –, a música segue para o primeiro grande momento do álbum, “Silurian Blue”. É aqui que ouvimos com grande força o resultado da experiência de Floating Points enquanto banda: afinal, inicialmente este tratava-se do projeto de eletrónica a solo de Sam Shepherd. Apesar de já terem gravado dois registos neste formato – o belíssimo Elaenia (2015) e o EP Kuiper (2016) –, Reflections soa ao primeiro álbum de Floating Points enquanto banda. É coeso e dinâmico: reflete uma química entre os seus elementos que antes não se sentia de modo tão marcante. “Silurian Blue” é a faixa em que isso se torna notório pela primeira vez. No princípio, ouvimos um Rhodes a viajar sozinho, ao qual, de forma muito orgânica e natural, se vão juntando o baixo, a bateria e as duas guitarras. Inicialmente tímidas, estas acabam por se soltar, assemelhando-se a coiotes a uivar e a correr furiosamente pela imensidão do deserto.
No crescendo que é continuamente construído e desconstruído, não conseguimos deixar de ouvir os Talk Talk da fase mais tardia. No entanto, aquela a mistura de rock e jazz que marca Spirit of Eden e Laughing Stock é grandemente enriquecida, quer seja pela influência eletrónica que Sam Shepherd não consegue deixar de transpor para as composições, quer pela própria sensibilidade dos músicos, que conseguem criar algo muito emotivo sem que isso se torne demasiado. Além disto, o próprio ambiente que os rodeia faz questão de não deixar de aparecer e de tornar esta composição ainda mais única: a certa altura, começa a ouvir-se o crocitar de um corvo. É como se a própria natureza quisesse deixar a sua marca em algo que, só por si, já é bastante especial.
A malha intrincada de contributos e influências adensa-se em “Kelso Dunes”, o grande destaque de Reflections, que, juntamente com “Silurian Blue”, perfaz mais de metade do álbum (no total, este não chega a ter meia hora de música). Há os já ouvidos post-rock e jazz, aos quais se junta uma veia krautrock, que se escuta, sobretudo, no modo NEU!esco como a bateria, sem perder a base motorika, se vai metamorfoseando e catapulta toda a composição para céu negro e estrelado do Mojave. Em “Kelso Dunes”, mais do que em qualquer outro momento no álbum, o experimental funde-se com belas melodias para criar uma peça verdadeiramente transcendental. As guitarras fazem de voz, ora sussurrando ora gritando as notas que guiam a faixa. O som que ouvimos brotar delas é progressivamente trabalhado e evolui, de forma dinâmica, com a manipulação e acumulação de efeitos: perto do final, o que se ouve é uma mistura das texturas imensas de Kevin Shields com a emotividade de Neil Halstead ou dos Explosions in the Sky. O baixo e os teclados estabelecem a espinha dorsal desta composição, sem nunca desaparecerem, num drone hipnótico que vai tendo umas subtis e tão belas variações.
Esta rede densa de sons que se acumulam e sobrepõem vai ganhando cada vez mais corpo, até rebentar num clímax catártico de enormes proporções. E eis que, quando se pensava que a música estaria perto do fim, somos surpreendidos por uma bateria ainda mais agressiva e compassada que, com as contribuições dos outros instrumentos, culmina num final apoteótico e épico, de deixar o ouvinte quase sem fôlego. Os arpeggios que rastejam sozinhos no término de “Kelso Dunes” caminham até “Lucerne Valley”, na qual toda a energia construída em Reflections desagua pacificamente. A bela e etérea faixa ambient – que facilmente podia ser atribuída a Steve Hauschildt – põe, assim, um ponto final nesta viagem pela desolação imensa do Mojave.
Ao longo do álbum, há algo que nos faz lembrar os Pink Floyd de Live at Pompeii. Contribuem para isto não só alguns sons das guitarras e teclados ou até o modo como é estruturada a música (claramente influenciada, entre outros, pelo prog rock que os britânicos criavam no início da década de 1970), mas também a própria memória cinematográfica – se descrevermos a situação “banda abandonada com a sua música num sítio afastado da civilização” a um melómano, o mais certo é falar-nos desse álbum-filme de Gilmour, Waters, Rick Wright e Nick Mason. Contudo, e sobretudo no monumento que é “Kelso Dunes”, aquilo que torna as composições dos Floating Points únicas e as leva numa direção bastante diferente daquilo que poderíamos esperar dos Pink Floyd é o excelente trabalho de Leo Taylor na bateria. De facto, é impressionante o que o baterista consegue fazer utilizando um kit muito simples: responde sempre acertadamente às necessidades rítmicas das músicas e introduz, ao mesmo tempo, pequenas alterações cirúrgicas que acabam por se revelar cruciais. É nestes pormenores que a magia de Taylor sobressai: no contexto geral do que se está a passar com os restantes instrumentos, as suas escolhas acabam por provocar mudanças enormes naquilo que a música nos está a dizer e na forma como o diz. O baterista demonstra, deste modo brilhante, uma versatilidade e sensibilidade enormes.
A visualização do filme para o qual Reflections – Mojave Desert serve de banda sonora, não sendo indispensável, é aconselhada. Se a música, por si só, já cria uma imagem mental muito nítida do ambiente em que se desenrola a gravação, os planos com que somos confrontados no início da curta só ajudam a tornar essa projeção ainda mais clara – árvores de Joshua, planícies secas e áridas, rochas enormes, enfim: tudo aquilo que a nossa mente já tinha construído torna-se real.
Ver esta curta é importante também pelo facto de nos relembrar que, mais do que tudo, este álbum-filme é o resultado de uma exploração das potencialidades acústicas espaço imenso do Mojave – aliás, foi isto mesmo que inspirou a sua gravação e realização, respetivamente. “Kites”, o interlúdio que separa “Silurian Blue” e “Kelso Dunes”, é porventura a faixa em que estas experiências sonoras se ouvem melhor: o arpeggio que ecoa numa repetição cíclica é, numa primeira parte, captado por microfones fixos a diversas distâncias da fonte sonora. Depois, ouvimos este conjunto de notas automatizadas num rodopio quase incessante, algo que só ao ver o filme nos apercebemos como é criado: trata-se de Sam Shepherd, com um gravador nas mãos, a apontá-lo em diversas direções. O resultado – e aqui fala-se não só de “Kites”, mas sim de todo o produto sonoro – é algo que nos dá a hipótese de escutarmos o que acontece ao som no deserto, local que habitualmente julgamos ser seco e estéril e que, afinal, este neurocientista músico nos mostra quão rico e vivo realmente é.
* – à data da publicação, o filme encontra-se em live stream no YouTube.