Mais de duas décadas depois do seu último álbum, os Slowdive voltam a agraciar-nos com o seu shoegaze maravilhoso. O quarto disco dos ingleses vem também fortalecer o regresso deste género, que tem sido marcado por grandes álbuns. Depois de mbv ter surpreendido em 2013, a guarda da coroa volta a ter custódia partilhada.
Álbuns de regresso nunca são fáceis. Normalmente ou se acerta em cheio ou se falha redondamente. Para a felicidade de todos, os Slowdive não podiam ter voltado em melhor forma: Slowdive é o seu primeiro álbum após a reunião da banda em 2014, depois de um hiato de 19 anos, e o quarto longa-duração dos ingleses, seguindo-se a Pygmalion (1995). Slowdive é também a afirmação de um grupo que, após muitos anos de experiências com outras bandas e/ou a solo, regressa à casa de partida com força e cabeça renovadas. Deste modo, conseguem executar brilhantemente a missão que Neil Halstead, em entrevista, tinha definido antes da gravação do álbum: criar um registo que soe a Slowdive, mas que é diferente do que está para trás.
É em câmara lenta que vamos mergulhar de cabeça nestes 46 minutos de puro êxtase. Na cinemática “Slomo” encontramos uns Slowdive que, sem pressas, nos devolvem aos pedaços de si que sempre lhes reconhecemos: as guitarras sonhadoras carregadas de modulação, reverb e delay, as belas vozes processadas e escondidas entre os outros instrumentos, o baixo sóbrio que segura tudo e a bateria sempre tão inventiva. Na acalmia desta faixa inicial, somos suavemente reintroduzidos à magia de Rachel Goswell, Neil Halstead, Christian Savill, Nick Chaplin e Simon Scott. No final, está levantado o véu e, assim, podemos passar para o outro lado.
Aí, a guitarra de Christian, encharcada em reverb, mostra-nos o caminho para as estrelas com apenas três acordes. Depois, num pequeno segundo, juntam-se-lhe os restantes instrumentos e tudo explode – “Star Roving” emerge, assim, do meio de uma supernova de som. Nesta fantástica música, o primeiro single do álbum, ouvimos uma agressividade etérea da qual quase não se consegue encontrar exemplos nos primeiros álbuns do grupo. Este começo forte é altamente favorecido pela bateria incansável de Simon e pela aura lisérgica que paira sobre toda a composição. Deste modo, os Slowdive conseguem, em “Star Roving”, criar um brilhante misto de shoegaze e rock psicadélico: lembra um pouco o que aconteceria se a secção de teclados dos Horrors de Luminous fosse substituída pelas guitarras dos Black Rebel Motorcycle Club.
Além de “Star Roving” (definitivamente um dos grandes momentos de Slowdive), outra música em que somos esmurrados contra uma wall of sound que se ergue do nada é “Everyone Knows”. Depois desse choque incial – semelhante a mergulhar de repente no mar frio –, somos levados a flutuar por um oceano de sintetizadores e guitarras que soam a um sol resplandecente, que brilha pela primeira vez depois de nuvens o terem coberto durante horas. Pelo meio, ainda somos surpreendidos com uma belíssima variação de acordes. Os sons cristalinos que a compõem mexem com o nosso cérebro e provocam ondas de prazer, tal é a quantidade de serotonina que passa a correr pelo nosso sangue nesse momento. “Don’t Know Why” tem um pouco o mesmo efeito, mas com um riff indutor de êxtase automático a aparecer desde o primeiro segundo. Aqui, no som que ouvimos brotar das guitarras e da voz delicada e onírica de Rachel, sente-se um efeito curioso – os Slowdive a soarem um pouco a uma banda que eles próprios influenciaram muito: os russos Pinkshinyultrablast. É a continuação do legado já antigo da Cena Que Se Celebra a Si Própria.
Perceber-se-á por agora que os britânicos continuam a exibir uma capacidade que desde sempre tiveram: adulterar, sem qualquer malícia, as emoções de quem os ouve. De facto, as frequências sonoras que produzem estimulam os sentimentos profundamente, de tal modo que, perante a densidade emotiva das suas composições, é impossível não sermos afetados elas. “Sugar for the Pill”, segundo single de Slowdive, e “Go Get It” são claros exemplos disso.
Contudo, nenhuma música deste registo chega aos calcanhares de “No Longer Making Time”, no que toca à carga emocional que condensa. É isto que a torna, na minha opinião, a melhor música de Slowdive. Tudo começa no modo simples como o baixo e uma simples sucessão de notas em cascata na guitarra (cheia de delay, claro) se juntam à bateria. Depois, as vozes de Rachel e Neil surgem entrelaçadas, sem que um se sobreponha ao outro, criando belas harmonias. O clímax emotivo surge no refrão, quando todos estes elementos se juntam e a sua força parece triplicar-se. E o melhor disto é que surge sem aviso: apanha-nos desprevenidos, como uma onda que rebenta de repente na nossa cara. Além disto, a conjugação da melodia triste com as bonitas letras sobre um amor em ruínas ajuda a tornar o efeito emotivo ainda maior.
Ainda sobre “No Longer Making Time”, há que sublinhar a sua produção perfeita: tudo soa imensamente natural, feito sem esforço, como se lhes corresse no sangue criar sublimes composições sonoras. A prova de como esta música é poderosa está no modo como o seu término nos deixa a desejar que o riff recomece. É como uma droga, mas à qual, além do prazer imenso que temos em a tomar, se junta o facto de não haver efeitos secundários indesejados.
Por fim, é impossível não destacar o final belíssimo que é “Falling Ashes”. Envolta num nevoeiro enigmático, nela ouvimos uns Slowdive completamente diferentes daquilo a que estamos habituados. O modo como são utilizados os instrumentos é preponderante para isto: as vozes que se acumulam em camadas ou as guitarras que surgem numa repetição cíclica não são elementos estranhos nas composições dos Slowdive. Contudo, o que provoca uma grande diferença e obriga a uma manipulação alternativa destas componentes familiares é adição do loop de um piano clássico. Presente do início ao fim da música, este estabelece desde logo o ambiente em que a música se desenrola. A melancolia patente nesta sucessão de três notas invoca aquela sensação de olhar pela janela no inverno, ver a chuva lá fora e, ao mesmo tempo, sentir o calor da casa – é entristecedor, mas estranhamente reconfortante e aconchegante. Além disto, o drone no piano fornece também a base sobre a qual vão surgindo outras texturas, sejam elas os elementos já referidos ou algumas gravações de campo (aqui a influência da carreira a solo de Simon Scott enquanto produtor de ambient e artista sonoplástico é crucial).
Fecha-se assim, deste modo surpreendente, mais um capítulo da história dos Slowdive. A grande vantagem de ter uma música como “Falling Ashes” para terminar o álbum é que deixa em aberto muitas hipóteses e caminhos para o trabalho futuro da banda. Se toda a evolução que é notória ao longo do disco denuncia uma vontade de mudar, as texturas, que muito referenciam as paisagens sonoras de Just for a Day ou Blue Day, têm um efeito que, parecendo contrário a esse desejo de mudança, não o é; trata-se, isso sim, do sucesso da missão que Neil Halstead tinha traçado para este álbum: fazer um álbum que soasse a Slowdive, mas que representasse uma evolução e não apenas a repetição de uma fórmula. Assim, os britânicos entregam-nos mais um disco fantástico, repleto de segredos para descobrir ao longo de várias audições e que em nada fica atrás dos seus antecessores.