O tempo passa, embora por vezes pareça não passar tanto assim. Só quando olhamos para o retrovisor da vida, é que podemos perceber melhor a distância do passado. É filosófico este tempo que se recusa a ir no seu próprio embalo, e teima em resistir. Todos sabemos que os discos são instâncias sonoras de um tempo preciso, mesmo que muitas vezes transcendam a prisão e o prazo a que estão sujeitos. É o caso do disco que hoje vos propomos: Ocean Rain, dos Echo & The Bunnymen.
Acontece que os Echo & The Bunnymen ainda estão vivos (lançaram há pouco o disco Meteorites), mas já não como há trinta anos, quando surgiu aquele que é considerado por muita gente que sabe o que diz, como um dos melhores discos de sempre. A esse propósito (o do exagero), lembro a frase de Joseph Maistre, que disse um dia que “o exagero é a mentira da gente honesta”. Daí que se afigure necessário dizer que não pretendo mentir, e por querer ser honesto, não posso deixar de referir que Ocean Rain tem das melhores canções que o século passado conseguiu produzir. Talvez fique melhor assim descrito o disco que tão bem revelou a banda de Ian McCulloch, Will Sergeant, Les Pattinson, e do grande Pete de Freitas, tragicamente falecido num acidente de mota, aos 27 anos, em 1989. Ocean Rain é, indiscutivelmente, o melhor trabalho da banda de Liverpool, e foi o quarto de uma série de álbuns de qualidade indesmentível. A partir daí nunca mais foram os mesmos, e por isso é bom lembrar este disco, agora que a data redonda torna propícia a memória do tempo do seu lançamento. Ocean Rain aguentará outros trinta anos sem grandes marcas de envelhecimento auditivo, nem rugas de expressão artística. Convém lembrar que nele existem canções como “Silver”, “Crystal Days”, “The Killing Moon”, “Seven Seas”, “My Kingdom” e “Ocean Rain”, sendo que neste elenco de temas vai mais de meio disco.
Nos anos oitenta, e depois de álbuns tão marcantes como Crocodiles, Heaven Up Here e Porcupine, Ian McCulloch e companhia queriam fazer um disco de grandeza inaudita, épica, e deram o melhor que tinham para atingirem esse objetivo. Para além dos quatro elementos da banda, os Echo contaram, na gravação do disco, com a participação de uma orquestra de 35 músicos, e o rasto desse som percorre Ocean Rain, fazendo dele um marco de elegância e sobriedade absolutamente admiráveis. No tempo em que surgiu, em 1984, o mundo dos jovens amantes da música dividia-se em duas metades distintas, bem afastadas por marcas claras de “bom gosto” (era assim que eu, com 16 anos, via as coisas): havia os que amavam os Echo & The Bunnymen e os que amavam os U2, estes naturalmente em maior número. Sempre estive, inequivocamente, do lado dos Echo, e ainda hoje sei que fiz a opção certa.
A qualidade extraordinária de Ocean Rain reside no conjunto de composições que apresenta, mas também no trabalho de Will Sergeant (a sua guitarra e as suas texturas são míticas), nos arranjos de cordas, na simplicidade da sua produção (basta lembrar, por comparação, a grande quantidade de discos dos anos 80 que se perderam devido à produção típica da altura), no registo ímpar da voz de Ian McCulloch, no imaginário de sombra e luz de algumas das letras cantadas. Há por todo o disco ecos (desculpem a expressão, que não pretende piscar o olho ao nome da banda) de Joy Division e de The Cure, e isso agrada-me ainda hoje, como sempre me agradou. O post-punk tem em Ocean Rain um belíssimo manifesto de maturidade, e merece ser agora recordado também por essa circunstância. Isto já para não falar da fotografia da capa do LP, de autoria de Brian Griffin, sombria e evocativa do espírito que se ouve nas nove faixas do disco.
Se quiser aventurar-se a embarcar neste Ocean Rain, tente a edição em cd que comemorava, à época, os 25 anos do surgimento do álbum. É que nele, para além do disco original, há ainda mais 8 temas que merecem audição atenta, bem como um booklet com fotos inéditas e texto de Max Bell (jornalista bem conhecedor da história da banda) de interessante leitura. Regresse ao passado, recue 30 anos, e vai ver que não se arrependerá.