O seu público aumenta, as salas maiores abraçam-na: a música experimental está a crescer no seio da vida cultural lisboeta. No cerne desta expansão estão, é claro, pessoas. Nesta reportagem, o Altamont foi conhecê-las.
Os últimos pós de estática projetados no ecrã gigante do Teatro Municipal Maria Matos desvanecem-se. Ao mesmo tempo, os ecos do coro de sintetizadores angelicais tornam-se, a cada repetição, mais ténues, até que deixam de se ouvir. No final, o público tem dificuldade em processar o que ali se passou durante a última hora: como que hipnotizados pelo que acabaram de vivenciar, demoram alguns segundos até irromperem numa grande salva de palmas – chegava, deste modo, ao fim a experiência multissensorial criada por Paul Jebanasam e Tarik Barri. A apresentação ao vivo de Continuum, o último álbum de Jebanasam, acompanhada pela poesia visual de Barri, encontrou em Lisboa um público bem composto e que aderiu à proposta destes artistas. Com esta atuação, o Maria Matos conta com mais uma aposta de sucesso na sua programação de música experimental.
A sala quase cheia para ver esta colaboração é o sintoma de uma mudança que, ao longo dos anos, se tem vindo a verificar em Lisboa: o público no circuito da música experimental está a crescer. Pelo menos, é essa a impressão de quem frequenta mais regularmente eventos desta índole. Simão Simões, músico e ilustrador, atribui este suposto aumento à explosão da cultura da internet e das redes sociais. Por sua vez, Tomás Raposo – também conhecido pelos seus nomes artísticos William Williams, Salary Plot Sex ou Coin Laudry Service —recua mais no tempo e refere que este crescimento começou, na verdade, na década de 1990 “com a disseminação generalizada e massificada de conteúdos informativos”.
Contudo, outros são mais conservadores no seu entusiasmo com este crescimento. “Não estou a ver assim um grande crescimento nesse sentido” diz Jari Marjamaki, enquanto arruma toda a parafernália de cabos, teclados e sintetizadores depois de mais um Desterronics – a noite de improvisação eletrónica que acontece todas as quartas-feiras – cheio de participantes. O artista finlandês, uma das figuras principais do DARC (Desterrense Associação Recreativa e Cultural) – mais conhecido como Desterro –, está em Portugal desde o início dos anos 1990 e garante que “sempre existiu público para estas coisas”.
Ao contrário de Jari, Tiago Castro mostra-se confiante num crescimento forte do público. O artista acaba de terminar mais um concerto: desta vez foi na Sala 2 do Cinema S. Jorge, no penúltimo dia do MUVI – Festival Internacional de Música no Cinema. Está frio nesta noite de novembro, mas o homem por trás de Acid Acid e, também, radialista da SBSR.Fm está de t-shirt, como se tivesse acabado de correr uma longa distância. Sentando-se num banco da entrada do Cinema, continua a falar, mudando o foco da conversa para um ângulo diferente. Mais do que um aumento do número de pessoas a ir aos concertos, Tiago fala de uma maior sensibilidade do público geral para este tipo de música, potenciada pelo trabalho de sítios como, por exemplo, o Maria Matos: “vês muita música marginal a acontecer ali, muita música virada para a experimentação sónica e alguns concertos que até são um pouco complicados de ver, mesmo para quem segue a música mais marginal.”
Além disto, e apesar de acreditar nessa subida grande do número de frequentadores destes espaços, percebe porque é que a mesma pode não ser muito visível: “Nota-se também é outra coisa, que é o público a dispersar por várias salas, porque, neste momento em Lisboa, temos uma programação de segunda a domingo.” De facto, algo que parece evidente é o grande número de espaços que, neste meio, tem aberto nos últimos tempos, algo que tem por consequência a fragmentação de um público que, estando em crescimento, não é grande.
A par do grande boom dos espaços culturais, outro crescimento parece evidente: o do número de artistas.
Tomás, Francisco e Simão: três faces de uma cena em expansão constante
Tomás abre a porta com um grande sorriso na cara. Por trás, ouve-se uma música eletrónica glitch em repetição, que se torna hipnotizante. Ao entrar na sala, percebe-se então o que está a acontecer: está a ensaiar para o concerto que vai dar mais logo como William Williams, no Banco. Quem já o tinha visto noutras paragens como Salary Plot Sex vai estranhar não sair com os ouvidos perfurados por um harsh noise desconcertante e dissonante: com o pseudónimo de William Williams, a música que Tomás apresenta é mais próxima do ambient. Sentado na sala da sua casa, com o computador à frente, o algarvio de 22 anos, natural da zona de Lagoa, vai treinando as transições – ou “transissons” como diz a brincar – entre as faixas que vai apresentar nessa noite. Aluno de Estudos de Cultura e Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Tomás tem “uma preocupação constante com o som e com assuntos próprios da arte sonora, dos estudos de som e as dinâmicas sociopolíticas próprias do som quando este é praticado no meio da cidade”. A partir daquilo a que chama “exercícios estéticos”, este jovem artista explora o mundo dos sons. Aliás, foi a partir de um destes exercícios que surgiu William Williams: “é o meu projeto mais virado para a teoria da comunicação, para séries não-verbais, ininterruptas de codificação, transmissão, receção de informação entre códigos, unidades e sistemas distintos: basicamente tem que ver com o caráter operativo do som”. Mais importante que perceber esta descrição – que Tomás confessa, entre risos, ser abstrata –, importa saber que, para este artista, a insatisfação com o som é que dá força a esta procura constante por novas sonoridades: “a partir do momento em que soa bem, começa-se outra [composição]. Porque importa nunca parar e esse é que é o ponto de honra, é produzir, produzir, produzir, produzir. Sempre.”
Ao fim de um bocado, começa a falar sobre aquilo que, para ele, torna Lisboa uma cidade verdadeiramente interessante, no que toca a desenvolver música: o contacto entre pessoas. Dentro do que isso engloba, Tomás dá muito valor à influência artística que surge do contacto com outras pessoas com sensibilidades estéticas diferentes. Acima disso, contudo, “tu poderes conversar com alguém, independentemente de quem seja a pessoa, acerca de determinados assuntos que, se vivesses isolado ou numa região mais periférica, enfim, não terias a possibilidade de o fazer” é a porta mais importante que Lisboa lhe abre. Quando começamos a falar sobre a vaga de novos artistas, os seus olhos brilham de excitação: “sem dúvida alguma que contribui para que a arte se desenvolva, e eu sou completamente a favor da democratização das formas de arte! Quantas mais pessoas houver a trabalhar formas artísticas variadas, maiores são as possibilidades da arte se expandir, se ampliar!”. Contudo, a questão financiamento nas artes torna-o mais sério. Acredita piamente que “a Arte devia ser uma das preocupações centrais do estado” e diz que é ridículo o facto do Estado só gastar “uns 2% com as artes” – na verdade, o valor anda mais próximo dos 0,8%. Nesse sentido, Tomás acha que devia haver melhores condições para os artistas. Não quer, contudo, com isto dizer que quer apoios para os artistas; antes prefere falar em “apoiar espaços que, por sua vez, apoiarão os artistas; ou seja, trata-se de criar um contexto vivo e diversificado, no qual as pessoas realmente se possam imergir e essa é que é a minha posição: o estado apoiar a criação de espaços, facilitar a criação de associações culturais.”
Telheiras. Zona T. Casa de Mike el Nite e companhia. Contudo, também aqui encontramos alguém que faz um tipo de música muito diferente: Francisco Marujo. O ar da tarde enche-se com os seus sintetizadores etéreos e batidas pesadas, entregues com uma leveza pesada aos nossos ouvidos: é Carga Aérea que escutamos, o alter ego de Francisco. Em casa, o jovem de 21 anos senta-se à frente do computador a estudar uma parte de uma faixa que não lhe está a soar muito bem. Incessantemente, procura acertar os efeitos e todo um conjunto de botões até encontrar o som que tanto procurava. O estudante de Ciência e Tecnologia do Som na Universidade Lusófona revela que vê, na cidade de Lisboa, uma terra de possibilidades: “começa a haver cada vez mais sítios, sítios a aparecer todas as semanas, espaços novos para esse tipo de vertentes artísticas [música experimental] e, portanto, acho que é mais fácil, lá está, tens sítios onde tocar.” Francisco também vê na quantidade cada vez maior de artistas algo de muito positivo e dá o exemplo da editora que lançou o seu primeiro disco, a Rotten \\ Fresh, para ilustrar o quadro de um movimento cheio de vida: “acho mesmo que o Diogo, que fundou, anda a meter lá gente com mesmo muita qualidade e ainda mais nova do que o pessoal da Alienação; há muitos que ainda nem fizeram 20 anos. É fixe ver que está a aparecer gente talentosa cada vez mais cedo na vida”.
Sentado na sua cadeira, Francisco vai mexendo o rato para a frente e para trás no programa de música. Ele é o exemplo de alguém que, com pouco, conseguiu construir um som sólido e forte. Ao mesmo tempo, a sua origem e existência humildes no mundo da música levam-no a considerar que “toda a gente deve ter meios e apoios para fazer a arte que quer”. Embora tal apoio possa redundar numa grande sobrecarga de programação, Francisco não parece preocupado: “em termos artísticos, oferta nunca é demais”. Além disso, entende que quanto maior a oferta, mais público é atraído para o meio e, eventualmente, uma situação como a que viveu no OutFest, no Barreiro, deixará de ser a exceção: “no último dia – mesmo nos outros dias estava cheio – estava esgotado, era um festival à séria, não me conseguia quase mexer lá dentro, estava cheio de gente num armazém com dois andares.”
Simão senta-se num dos sofás do Banco. Estamos na segunda noite do festival da Rotten \\ Fresh neste pequeno bar localizado junto à Sé de Lisboa. Hoje é a vez de Carga Aérea, Império Pacífico e Oströl darem vida a este espaço que muitos descrevem como o novo Estrela Decadente. Simão e Tomás, sob o nome de William Williams, já cumpriram as suas funções na noite anterior. A eletrónica de Simão – que lembra por vezes o trabalho de Babyfather ou Hype Williams (alter egos do londrino Dean Blunt) – encantou os presentes, com uma música que parece ser a companhia perfeita para as histórias das personagens que cria nos seus desenhos. Com uma enorme descontração – e entre muitas risadas –, Simão conta como Lisboa se tornou fulcral para a sua evolução artística: a enorme quantidade de espaços culturais são, para ele um meio importante “para te influenciares em termos de ideias que são dadas por pessoas que conheces e para tocar”. Contrastando com cidades mais pequenas, ele vê na diversidade de públicos que frequenta os diferentes sítios como o ponto diferenciador da capital face ao resto do país: “haver vários [locais] diferentes, com vários circuitos de pessoas diferentes que se juntam em pontos diferentes é muito fixe e é uma grande vantagem de viver numa metrópole grande.” Ele compreende que a quantidade grande de espaços traz consigo uma enorme oferta que por vezes, confessa, dispersa um pouco até o seu grupo de amigos. Apesar disso, esta dinâmica da grande cidade não o incomoda e vê com muito bons olhos esta enorme oferta: “ao ser divulgado, a palavra, os nomes dos artistas e mesmo a sua música vai chegar a lados que não iria chegar de outras maneiras; torna-se tudo muito mais fácil havendo uma quantidade muito saudável de espaços onde há coisas a acontecer.”
A sua face é também a desta nova e numerosa geração de novos artistas a aparecer no mundo da música exploratória. Sobre este boom, Simão confessa que a sua opinião acerca da qualidade dos projetos não interessa muito, já que “mesmo muitos deles podendo ser uma coisa que eu não gosto muito, a existência dos projetos é uma coisa super saudável”, pois “aparecer um projeto novo é mais meia dúzia de pessoas que vão ficar cientes e gostar de um estilo de música ao qual não estão habituados, que pode, por si, fazer aparecer mais projetos e é assim um ciclo que eu acho que funciona bem”. Este ambiente fértil, que inspira os criadores e os que começam a criar, torna também o caminho de alguém que está agora a começar ligeiramente mais fácil. Simão vê a beleza deste circuito na facilidade com que este acolhe novas ideias e projetos: “qualquer pessoa consegue começar a fazer a música que quer, por si, sem ter muitos apoios, sem ter uma base financeira muito estável e pode conseguir fazê-la e dar concertos estando neste circuito mais pequeno”. Por esta razão, tal como Tomás, acha que “haver fundos do Estado, especialmente para espaços onde o pessoal vai tocar é uma coisa superimportante”, mais do que apoiar os artistas em si. Aliás, a prova de que os artistas, com algum esforço, conseguem fazer-se ouvir e começar a dar concertos está na editora que une Tomás, Francisco e Simão: a Rotten \\ Fresh.
Rotten \\ Fresh: uma fruta fresca e longe da podridão
Diogo Oliveira é o homem por trás da Rotten \\ Fresh – ou simplesmente Rotten, como também é conhecida. Em cada concerto de um dos projetos que tem debaixo da sua alçada, lá está, sorridente e orgulhoso com o sucesso dos seus artistas – e no seu primeiro festival, organizado no Banco, não é diferente. Esta editora – que, na verdade, também cumpre a função de agenciamento – é muito jovem: tornou-se uma realidade física com o seu primeiro lançamento em março de 2017. Ao contar a história de como tudo começou, Diogo faz com que este pareça um processo fácil e simples: “eu gosto muito de música, de todo o tipo de música; já tinha maquetes e trabalhos feitos que amigos me mostraram, eu gostei e decidimos criar a editoria discográfica. Depois, entretanto, fui conhecendo mais pessoas e decidi expandi-la.” E, de facto, foi uma expansão enorme: desde março, lançaram cinco discos e conseguem organizar concertos quase todos os meses. O ar brincalhão de Diogo contrasta imenso com a sua seriedade no que toca ao planeamento do trabalho da Rotten: “Vamos acabar dezembro com um álbum de Funcionário e começar a preparar a restante discografia, os próximos 5 álbuns, que é aquilo que eu almejo conseguir anualmente.”
Antes de ser o chefe da editora, Diogo é um fã de música. Como tal, notou que houve um crescimento de público em eventos de música experimental, “mas não foi massivo. De qualquer modo, o género experimental não é suposto ser massivo”. Aliás, a quantidade baixa de espectadores em alguns eventos da Rotten é prova disso mesmo. Contudo, Diogo não está preocupado com isso: “quantas mais pessoas quiserem vir melhor! Independentemente disso, este trabalho vai continuar. Se não fosse para continuar ou nos deixássemos influenciar pelo número de pessoas que vêm aos nossos eventos nós simplesmente não tínhamos lançado nada.”. Com esta confiança, mas também consciencializado com o trabalho que tem pela frente, Diogo revela que o futuro da editora passa por uma “expansão para fora de Lisboa”. O primeiro objetivo é conseguir tocar “do outro lado do rio; depois tentar tocar no Porto e em algumas cidades.”
Portugal: o retrato de uma cena musical tão excitante como frágil
A realidade aqui trazida com o exemplo da Rotten \\ Fresh é apenas o reflexo de uma dinâmica mais profunda. Sentado num dos sofás da SMUP – Sociedade Musical União Paredense – enquanto bebe o seu café antes de subir para o concerto de João Hasselberg, Rui Eduardo Paes avança a razão pela qual o contexto da música portuguesa – não exclusivamente a experimental – é um ecossistema tão rico e vivo: “o facto de haver um maior número de músicos de qualidade cria uma dinâmica e essa dinâmica que nasce tem consequências a nível de criatividade”. Jornalista musical há cerca 30 anos, editor da Jazz.pt e escritor, Rui diz haver “qualquer coisa” em Portugal que fez despertar as atenções da imprensa e de editoras internacionais. Enquanto que noutros países houve picos de criatividade, Rui considera que, por cá, “a coisa tem-se mantido”, e essa é a razão pela qual surge essa curiosidade. Para ele, as condições para o aparecimento desta cena musical são criadas no momento em que, em Lisboa (por contraste com o Porto, em que isso já se verificava, segundo o jornalista), “se dissolveram as barreiras ideológicas e estéticas” e os artistas começaram a colaborar abertamente entre si, sem olhar muito a géneros ou qualquer tipo de ideias pré-concebidas. Esta consciencialização coletiva de “pertencerem todos à mesma coisa” adquire, na opinião de Rui, “contornos particularmente interessantes em termos de mistura de estilos, tendências, géneros musicais, em que acabas por ver um músico do free jazz a tocar com um gajo do rock ou com um gajo do hip-hop… E depois acontecem coisas como teres a Shelly Barradas das Clementine ou dos Vaiapraia e as Rainhas do Baile a tocar a Maria do Mar, que é uma violinista da música improvisada e outros encontros que não estás à espera que aconteçam.” Através da sua programação na SMUP, Rui tenta mostrar esta realidade viva com uma programação diversa, cujo ponto comum é serem projetos “que tenham algo a acrescentar”. O concerto dos Al-jiçç foi um exemplo disso mesmo: a mistura de jazz com rock e música de tradição sefardita é algo que muito poucos terão certamente ouvido.
Contudo, nem tudo é ouro sobre azul. Rui aponta claramente que esta “realidade fulgurante está construída sobre pés de barro”: os músicos são pagos, muitas vezes, à bilheteira (quando são pagos de todo), são obrigados a pagar as edições dos seus discos e os espaços que programam são muito pequenos e, demasiadas vezes, têm poucas condições. Apesar de tudo, o jornalista nota que houve uma mudança clara que se traduziu em benesse, sobretudo para projetos de música experimental e marginal: a proliferação de espaços fez com que a “cena sem cenário” que Rui diz ser a realidade de Portugal há 15 anos passasse a ter sítios onde acontecer. A SMUP é um exemplo disso. Com a sua reabilitação, esta casa mesmo à saída da estação de comboios da Parede tornou-se um local importante no âmbito dos espaços culturais da área metropolitana de Lisboa.
Foto de “Paul Jebanasam & Tarik Barri – Continuum”: José Frade ©