O álbum de estreia de Chavela Vargas, Noche Boemia, é arrebatado e melodramático. Como um coração sangrento num pano de linho.
Imagina-te no ultra-católico México, em 1961, e eis que, do nada, assoma o disco de estreia de Chavela Vargas. Ainda não ouviste uma nota sequer e já o LP te intriga. Na capa, Chavela apresenta-se máscula, de cabelo apanhado, e poncho à cowboy, como se fosse sacar do revólver a qualquer momento. O título, Noche Boemia, sugere noites quentes regadas a tequila, charutos cubanos e paixões proibidas. ‘Mais macho do que os machos’, ouves alguém dizer…
Quando finalmente pões o disco a rodar, e “Simón Blanco” se faz ouvir, percebes que estas rancheras são diferentes, mais lentas e com arranjos mais depurados, sem qualquer algazarra mariachi – apenas voz e guitarras. Sem os ornamentos do costume, Chavela obriga-te a prestar mais atenção ao drama pungente de cada canção. A sua voz é rouca e rude e viril, a antítese aboluta do arquétipo delicodoce do feminino. A ranchera sempre foi um género sentimental mas Chavela eleva a coisa para um novo patamar: o tom é arrebatado e melodramático, mais teatro do que canto, cuspindo-nos o seu coração em sangue.
E se tudo até agora te soube a escandaloso, o que dirás da sensualidade “secreta” do tema seguinte, quando Chavela, de mulher para mulher, sussura, lasciva: ‘ponme la mano aquí, Macorina, ponme la mano aquí’? Ah, e tal, é uma artista, é tudo uma representação… mas será que as ‘amigas’ Frida Kahlo e Ava Gardner, como circula por aí, dirão o mesmo?
Chavela é uma extraterrestre – pensas tu -, vestindo-se como uma mulher não se pode vestir, cantando como uma mulher não pode cantar, fodendo como uma mulher não pode foder. As suas cordas vocais são feitas de farpas e ferrugem e pus. Do ponto de vista técnico, a sua voz é questionável, nem sempre mantendo a afinação. E daí?
O que interessa em Vargas é a entrega, a profundidade, a verdade emocional. Chavela canta sempre como se fosse a última vez, dando-se sempre por inteiro. Chavela não representa, ela está mesmo a sofrer cada sílaba, oferecendo-nos todo o seu desamparo e solidão. E como a catarse é absoluta, acaba por ser uma experiência libertadora. A dor inteira do mundo expurgada. Para podermos sofrer amanhã outra vez…