O disco de afirmação de um libanês que é uma máquina a fundir funk, afrobeat, música árabe e psicadelismo, tudo pintado com a elegância de banda sonora de um filme italiano.
Charif Megarbane é um de um. Um freak, um acidente da natureza ou da cultura, um homem banda que já gravou mais de 100 discos mas a quem o mundo só agora começa a dar mais atenção.
É libanês, e isso é mais do que um pormenor no bilhete de identidade. Estudou no Canadá, viveu em vários países do mundo e teve base mais permanente em Nairobi, no Quénia, e em Lisboa, onde tem a sua âncora nos anos mais recentes. No meio de todo este mapa de influências e referências, o Líbano é o começo mas não o fim. O centro é o Mar Mediterrâneo, e isso significa o Líbano, sim, mas também Nápoles, Portugal, o norte de África.
Mas já lá vamos.
Megarbane é um workaholic. Habitou-se a compor e gravar todos os instrumentos das suas músicas, e com um ritmo de trabalho imparável foi juntando dezenas e dezenas de horas de obra, que foi colocando na página de Bandcamp da Hisstology, que não é mais do que um chapéu para os trabalhos do músico libanês nos seus vários projectos. O salto em frente deu-se quando começou a lançar discos pela Habibi Funk, editora alemã que se especializou em editar discos perdidos de música árabe, sobretudo quando influenciada pelo funk e pelo rock com toques de psicadelismo. Charif Megarbane acabou por tornar-se o primeiro artista contemporâneo a lançar discos originalmente pela Habibi Funk, o que significou que os seus trabalhos começaram a ter edição física e distribuição mais generalizada (estão à venda na lisboeta Flur, por exemplo).
Halawat é o seu último disco, já de 2025, e promete ser o trabalho que o implanta mais firmemente num imaginário colectivo que procura escapismo, elegância e, claro, dar ao pé.
O Mediterrâneo é o lugar imaginário onde a música de Megarbane se constrói, onde se sente mais em casa. E, tal como esse grande mar que uniu civilizações e hoje em dia separa mundos, as influências misturam-se, casam-se, corrompem-se, amam-se, dão origem a algo novo com os ingredientes iniciais.
Assim é a música deste libanês, com coordenadas como a música instrumental dos grandes mestres italianos – Morricone ou Piero Umiliano, por exemplo – o funk e o rock, as escalas mais comuns da música árabe, a guitarra fuzz dos filmes de blaxploitation, o ritmo do afrobeat, o baixo pulsante e a produção de Serge Gainsbourg ou a library music do mundo inteiro.
Tudo é processado, incorporado, mas dando um resultado extremamente melódico, fluido e solar. Outro factor de curiosidade, e que dá um bem-vindo toque de contemporaneidade, é uma produção que, aqui e ali, vai buscar fórmulas e linguagens ao hip-hop, como em “Al Bahryie”, por exemplo.
Habituado a fazer tudo sozinho, desta vez Megarbane contou mesmo com a ajuda de outros músicos e até de Sven Wunder, o sueco que nos tem também entusiasmado com o seu estudo contemporâneo do cruzamento entre bandas sonoras imaginadas e música oriental.
Mais do que destacar músicas individualmente, este é um disco para colocar e deixar tocar, e repetir, repetir, repetir. É uma viagem sonora não apenas pelo nosso Mediterrâneo mas também uma viagem no tempo, porque nos leva irresistivelmente de volta aos anos em que os músicos – nomeadamente europeus, e nomeadamente italianos – compunham verdadeiras sinfonias de bolso, três minutos em formato canção, que tanto podiam servir de banda sonora a um filme como animar o leitor de cassetes num qualquer piquenique ao sol.
Lisboa, cidade portuária e de mistura, é uma das bases de Charif Megarbane, que aliás tem dado discretos concertos, aqui e ali, entre nós. É tempo de darmos mais atenção a este cidadão do mundo. E podemos começar por este disco, e pelo concerto que vai dar, a 14 de Dezembro, na Casa do Capitão, em Lisboa, na companhia do lendário músico libanês Rogér Fakhr.