Magritte não diria melhor: isto não é uma reportagem sobre o concerto de Jards Macalé.
Não sendo, de facto, o que poderia ser, alguma utilidade tenho de dar a estas linhas. Sem grandes certezas, e sempre receoso de rótulos e classificações demasiadamente assertivas, talvez possa ser uma homenagem. Ou uma obrigação. Um imperativo de consciência. Ou ainda um tributo. Pensando melhor, e somando as partes mencionadas, este texto é uma vénia a quem merece a benção de ainda existir no longo e caudaloso filão da música popular brasileira dos últimos cinquenta anos. Talvez seja isso, não sei. Intermitente, na verdade, essa existência na história da MPB, mas capaz de ir colocando, no seu longo percurso, algumas bonitas, históricas e sublimes canções, quase sempre na voz de outros. A história faz-se muitas vezes por linhas tortas, e Macalé fez-se desse jeito. Uma espécie de “anjo torto”, à moda de Carlos Drummond de Andrade ou de Torquato Neto. “Let’s Play That”.
Uma coisa é certa: Jards Macalé foi virando mito e é assim que se apresenta, pelo menos aos meus olhos. Conta-se, por exemplo, que João Gilberto o livrou do suicídio, convidando-o a ir a sua casa, onde lhe cantou, até Jards Macalé adormecer, a canção “No Rancho Fundo”, do mestre Ary Barroso. E assim, dessa forma embalada e celestial, salvou-se a vida daquele que, já octogenário, se apresentou na noite de ontem, em Lisboa, no Musicbox, numa tour que o levou a várias cidades europeias, a propósito do também mítico disco de 1972, homónimo. Nesses idos tempos, o carioca estava em grande, se assim se pode dizer, por ter ido a Londres, a convite de Caetano Veloso, para gravar com o baiano o fabuloso (e igualmente mítico, pois claro) Transa. No entanto, depois de gravado o álbum que ontem se ouviu na nossa capital, o sucesso (quase) nunca lhe bateu à porta. O mundo não é justo, como tão bem sabemos, mas ontem alguma justiça houve no encontro entre Macalé e eu. Finalmente! Esperei uma vida por essa aproximação física (estava mesmo à frente do palco, a menos de meio metro dele, e se daqui a dias estiver com covid ou coisa que o valha, a culpa é do mestre Macalé, que estava “com uma tossinha desde hoje à tarde”), mas também musical. A música era toda dele, os ouvidos e as memórias absolutamente minhas. Foi uma noite feliz.
Os sonhos passam a ser outra coisa, depois de se concretizarem. Materializam-se na memória que conseguimos reter. Foi o que aconteceu ontem. Ontem, aliás, aconteceram tantas outras coisas! Tudo ali, naquele palco. Tudo ali, nas transferências rítmicas e poéticas vindas da cabeça de Jards Macalé em direção à minha. Também eu regressei ao passado. Não a 1972, mas aos anos oitenta, quando conheci o disco e o ouvi até a fita de uma velhinha BASF verde se esgaçar, entorpecendo-se para quase sempre a memória de um disco que nunca cheguei a ter em formato físico. Até ontem.
Findo o concerto, vieram-me à cabeça as mais simples e convictas certezas sobre o que verdadeiramente aconteceu. Sobre o que verdadeiramente escrevi. Afinal, este texto é apenas um grande e duradouro abraço por escrito a um herói algo proscrito da música popular brasileira chamado Jards Macalé!