À segunda edição, o Capote Fest sedimenta a sua condição de grande festival eborense da nova música portuguesa, especialmente a cantada em português. Especial destaque para a actuação dos Madrepaz, Riding Pânico, Bicho do Mato e Sequin.
Entre novas bandas, novas editoras e novos festivais, Évora está a começar uma movida interessante. A segunda edição do Capote Fest, que decorreu na passada semana, faz disso prova. Antes de esmiuçarmos os concertos, contemos primeiro como se chegou até aqui.
Em 2011, surge a primeira editora discográfica sediada em Évora, a Capote Discos. Como o próprio nome sugere, trata-se de um projecto com um forte orgulho nas suas raízes alentejanas, cheio de ganas de romper com o cerco que centraliza a cultura em Lisboa e no Porto. O gangue do Capote sabe bem que não é cultivando um Alentejo puro e asséptico, fechado sobre si próprio, que conseguirá a descentralização. O caminho é justamente o oposto: o do intercâmbio descomplexado, de igual para igual, com o que melhor se faz pelo país fora. É neste caldo de orgulho alentejano e abertura cosmopolita que a Capote cozinha as suas migas.
Em 2015, o colectivo estende o âmbito da sua actividade, abarcando também a produção de eventos, mudando então o nome para Capote Música. Na sombra, começa-se então a urdir um novo festival de música para a cidade: um tal de Capote Fest, a ser realizado em Maio. Se a ele somarmos o Évora Metal Fest (em Março) e o Black Bass Psychedelic Évora Fest (em Novembro), são já três os festivais de música moderna portuguesa que Évora nos oferece todos os anos. As coisas estão a ficar interessantes…
O conceito do Capote Fest é claro e bem-vindo: divulgar a nova música portuguesa, especialmente a que seja cantada em português. Neste sentido, podemos enquadrar a Capote Música no movimento que nos anos 2000 – impulsionado pelas editoras Flor Caveira e Amor Fúria- devolveu a língua portuguesa à nossa pop. Se músicos do camandro do século XXI, como os Feromona, os Capitão Fausto, os Diabo na Cruz, Os Golpes, Samuel Úria e B Fachada, rejeitam a moda provinciana dos anos 90 do “só és cool se cantares em inglês”, a Capote assina por baixo. Felizmente que já lá vão os tempos em que os estrangeirados Silence 4, Blind Zero, Primitive Reason, Gift ou Brainded detinham o monopólio tuga da coolness pop. Seja como for, a Capote prefere não arriscar, enfiando mais uns quantos pregos nesse caixão.
Em 2016, dá-se a primeira edição do Capote Fest, cujos nomes mais fortes são os eborenses Uaninauei e os lisboetas TV Rural (mais duas grandes bandas a cantar em português). Está dado o pontapé de saída do novo festival alentejano.
Em 2017, na sua segunda edição, o Capote Fest sobe a parada com nomes mais sonantes, como Sequin e os Riding Pânico. Mas o que mais ressalta no cartaz é o seu apurado sentido de equilíbrio, sopesando em igual medida não só bandas da terra com malta de fora, como também nomes consagrados com novos projectos.
Quinta, 4 de Maio. Os lisboetas Cassete Pirata abrem o festival na mítica Sociedade Harmonia Eborense, à Praça do Giraldo. Ficamos inesperadamente rendidos. O bonito timbre de voz de Pir, o seu talento como escritor de canções, a sensualidade das texturas e harmonias vocais da dupla feminina de teclistas, a pujança da secção rítmica, e o fino bom gosto com que tudo é embrulhado, conquistam-nos de imediato. O melodismo de Pir é tão extraordinário que a meio de canções que ouvimos pela primeiríssima vez já as sabemos cantarolar. Decorem o nome; estes piratas ainda vão dar que falar.
Sexta, 5 de Maio. A festa muda-se para outra histórica colectividade da cidade: a carismática SOIR- Joaquim António d’Aguiar, escondida no aconchego do Páteo do Salema. Numa estranha coincidência, a banda que se segue tem também “cassete” no seu nome: os eborenses Cassete Riscada, com o seu indie pop simples e despretensioso, quais XX e Entre-Aspas misturados numa bimbi. São muito jovens ainda, estão a dar os primeiros passos, mas é precisamente a sua frescura e ingenuidade que logo nos cativa. O rock competente dos senhores que se seguem- os lisboetas Bom Marido – não deixa descer a fasquia.
Mas é com os Bicho do Mato que a noite explode, carburando naquela mistura de virtuosismo, sátira social e boa disposição, que tão bem os define. Adoramos a tagarelice da guitarra slide de Zé Peps, num falatório constante com a viola campaniça de Tó Zé Bexiga, Mississippi e Alentejo sempre ao desafio, confirmando a sua condição de “a mais sulista das nossas bandas”. Reparamos que o seu som está mais encorpado do que o habitual. É o “homem da frente” Daniel Catarino que trocara a guitarra acústica pelo baixo, numa decisão que nos parece feliz. O seu carisma de animal de palco faz o resto, ou não fosse Catarino um selvático “bicho do mato”. O ponto do alto do concerto acontece, porventura, quando Ana Miró sobe ao palco para um dueto na bonita “Mãos de Aranha Coxa”, saboroso aperitivo que nos põe água na boca para a Sequin do dia seguinte.
A noite acaba com o pós-rock instrumental dos Riding Pânico: denso, experimental, assombroso. O pretexto é a apresentação do novo álbum: o belíssimo Rabo de Cavalo. Como sempre, os Pânico declaram guerra à pop, com o seu ódio visceral ao formato canção e a sua paixão pelo caos e o contraponto. Sentimos um misto de vertigem e volúpia enquanto caímos no abismo desconhecido da sua música. Numa banda que é instrumental, são as três guitarras em palco que fazem a vez das vozes, espicaçando-se, explorando as dissonâncias, provocando-nos. Numa abordagem musical onde a melodia é um valor quase maldito, tudo vive do sentido de viagem, das mudanças súbitas de ritmo, dos contrastes entre pausas e explosões. Seis grandes músicos conduzindo com mestria o nosso pânico.
Acabados os concertos, ainda há tempo para descermos até à discoteca Praxis Club para uns passinhos de dança, ao som das escolhas dos DJs Altamont, num alinhamento todo ele composto por boa música portuguesa, ou não estivéssemos nós numa parceria com o Capote Fest. Não é todas as noites que se tem a oportunidade de se ouvir Sitiados, Ornatos Violeta e Capitão Fausto a rodar numa pista de dança.
Sábado, 6 de Maio. A noite é aberta pelos eborenses Surreal Prisma, que nos oferecem um rock de travo progressivo e apurado sentido de groove, onde os longos jams de guitarra têm supremacia sobre a própria voz. O seu som vintage saboroso é como David Gilmour soaria se comesse sopa de cação mais amiúde.
Quem ouve depois a desenvoltura dos Baleia Piloto, juraria impossível tratar-se da sua estreia absoluta em palco. Gostamos da sua pop fresca, cheia de boas vibrações e sensualidade. O público responde na mesma moeda, abanando as ancas e sorrindo de orelha a orelha. A dança bizarra de um casalinho destaca-os da multidão, de tal forma que os Baleia Piloto não resistem a chamá-los ao palco. Ver aqueles miúdos a dançarem desengonçados, meio marionetas bêbadas, meio bonecos de plasticina checoslovacos de Vasco Granja, foi um momento terno e poético que não esqueceremos tão depressa. A mais pura magia a acontecer no Capote Fest.
Quando o cheiro forte a incenso chega até nós, sabemos que os psicadélicos Madrepaz estão prestes a começar. Tudo no palco tresanda a misticismo hippie, desde as velas no chão aos coletes hindus, passando pela colorida cauda de pavão aberta em leque. O guitarrista Ricardo Amaral partira o pulso há uns dias? Não faz mal, está-se bem: um amigo aprendeu numa semana as canções, tocando-as agora na perfeição, e Ricardo marca presença na mesma, tocando pandeireta e fazendo harmonias vocais. Se os Madrepaz têm uma filosofia é essa: “não faz mal, está-se bem”, mantra inspirador que acaba inevitavelmente por nos contagiar.
E ainda não falámos do mais importante: a música. Mas que enorme concerto, meus senhores! O revivalismo psicadélico à Tame Impala forma a base do bolo de haxe, mas condimentos medievais, étnicos e teclados prog rock, enriquecem a doçaria. Viajamos, dançamos, sorrimos, até que o último compasso acaba por chegar. Não faz mal, está-se bem…
E porque os últimos são sempre os primeiros, surge, por fim, a doce Sequin, fechando o festival com chave de ouro, naquele que foi porventura o seu momento mais comovente. As circunstâncias são, à partida, especiais: Ana Miró, filha da terra, cuja melódica synthpop entretanto lhe granjeou o merecido reconhecimento, regressando por fim ao rio onde nasceu, para ser aclamada também pelos seus. Com estas premissas, tudo pedia para que o dique emocional rebentasse, e foi justamente o que aconteceu: Sequin e público, com a cumplicidade que sempre une os conterrâneos, ambos orgulhosos e comovidos até às lágrimas. Quem não sente, não é filho de boa gente. E que bonito vermos aquela sala centenária subitamente convertida em cosmopolita pista de dança, com todo aquele povo a bailar em uníssono, ao ritmo das suas saborosas e melancólicas texturas electrónicas.
Obrigado, Sequin. Obrigado, Évora. Obrigado, Capote Fest. Para o ano estaremos cá outra vez.
Fotografia: Inês Silva