Durante quatro dias, Cem Soldos volta a ser o epicentro da música feita em Portugal. No primeiro dia, a taça foi para Selma Uamusse e Slow J.
O calor aperta, a aldeia enche-se de gente, há música nas ruas, sorrisos nas caras. Estamos em pleno Agosto de 2018, pico da época de festivais. Mais uma vez, Cem Soldos será o centro da música portuguesa durante quatro dias com a tranquilidade, boa disposição e boa programação a que sempre nos habituou.
Depois da recepção aos campistas na quarta-feira, o festival começou para o público em geral na quinta-feira, com os Palankalanka no palco MPAGDP. Sem nos levantarmos do banco da igreja, a guitarra quente e trémula, como o horizonte nos dias mais tórridos levou-nos para dentro de um spaghetti western à portuguesa, levado à boleia por um cavaquinho apressado, quais rodas de uma carroça ou galopar de cavalos de uma diligência no faroeste. Épico pitoresco por planícies alentejanas, com toque arabesco aqui e ali, o primeiro concerto na igreja abriu as hostes do festival e despertou os nossos ouvidos para a música.
Lá fora, o Sol já queimava. Num recanto atrás do palco Lopes-Graça, o concerto inesperado de Salvador Sobral surpreendeu quem por lá comia ou se abrigava na sombra. Subindo a escadaria de uma casa, o cantor lisboeta juntou-se a André Rosinha (contrabaixo) para uma versão do tema “Cœur de mon cœur” em Ré menor e compasso 4/4. Sorridente e brincalhão, Sobral retirou-se agradecendo aos cães que por ali passavam, ladrando, pelos coros.
Pouco depois, novamente no palco MPAGDP, entraram em palco as imponentes mulheres que compõem as Vozes de Manhouce, acompanhadas pela cantora Isabel Silvestre. O concerto começou com arrepios e terminou com enormes aplausos. Pelo meio, a igreja lotada escutou canções da ceifa, das romarias e outras tradições da aldeia em São Pedro do Sul. “Aleluia”, “Eito Fora” ou “Lá Vem o Vento da Noite” eriçaram pelos e evocaram passados, deixando a igreja em plena paz do senhor.
Seguiu-se Lince, que impressionou mais pelo arsenal de sintetizadores clássicos que trazia (um Korg MS-20, um Nord Electro 3 e um Roland de modelo desconhecido) do que pelas canções de synthpop genérico e desinteressante que trouxe ao palco Giacometti.
Selma Uamusse foi a segunda artista do dia a subir a uma escadaria no exterior de uma casa, tal como Salvador Sobral horas antes, para cantar uma canção. O concerto imprevisto reuniu um punhado de pessoas num beco de Cem Soldos para uma canção em inglês adornada de instrumentos africanos. Pelas escadas e pela rua, interagindo com o público que assistia, Uamusse abriu o apetite para o concerto que daria mais tarde.
Depois dos Lemon Lovers estrearem o palco Zeca Afonso, acompanhando o pôr-do-sol com o seu rock ligeiro a soar a Arctic Monkeys, Salvador Sobral e companhia subiram ao palco Lopes-Graça para também o inaugurar. Arrancando com “Change” e “Cerca del Mar”, canção após a qual saudou o público daquele que chamou de “festival mais giro do país”, Sobral prosseguiu com “Presságio”, poema de Fernando Pessoa acompanhado ao piano pelo habitué Júlio Resende. Depois de um morno concerto, Salvador Sobral fez as maravilhas do público com “Amar Pelos Dois”, canção obviamente entoada pela plateia do início ao fim e com aplausos que, previsivelmente, superaram os de qualquer outra canção. O fim não tardou a chegar, sendo altura de subir ao palco Amália o projecto Fado Violado.
A junção de fado e flamenco pode, ao princípio, parecer insólita. Rapidamente, ao escutar as junções de temas mais conhecidos como o são “Barco Negro” às rápidas e encadeadas guitarras do flamenco, percebemos que faz todo o sentido. Com Fado Violado os géneros fundem-se numa consequência lógica de tradições geograficamente irmãs, um som que não é nem português nem espanhol, antes um caloroso ibérico, de corpo e alma bem definidos.
Selma Uamusse trouxe ao largo do palco Lopes-Graça o som mais interessante da noite. Na exploração das suas raízes moçambicanas, a cantora mostrou-se brincalhona e intimista, deixando toda a gente com a atitude e música vibrante. Com disco de estreia anunciado para dia 7 de setembro, as canções de ritmos e instrumentos africanos, como a marrabenta e o mbila, respectivamente, até fizeram o público tirar os sapatos pra saltar e dançar de pé descalço no largo.
O concerto, que foi também o primeiro momento de verdadeira energia do festival, contou ainda com crianças da casa Rumo, do Barreiro, a dançar em cima do palco – antes do público se juntar a eles -, com uma balada pesarosa sobre África e o ser-se africano cantada em cima e no meio do público e com o clássico moçambicano “Baila Maria” de Chico António e Mingas para despedida. Revelando-se um monstro de palco, Selma Uamusse mostrou que sabe o que faz e que o faz como poucos, sem pretensiosismos e repleta de humildade, com uma surpresa a cada canção. Sem sombra de dúvidas: o concerto da noite.
Slow J, o último concerto da noite, também surpreendeu. Talvez a maior enchente da noite, o palco Zeca Afonso estremeceu com as guitarras ao vivo, as batidas, os subgraves e os temas cantados do início ao fim pelo público, espalhado pelo anfiteatro natural. Apresentando o disco de estreia, The Art of Slowing Down (2017), o próprio cantor e rapper João Coelho não contava com tamanha recepção num festival cuja existência desconhecia. Canções como “Arte”, que abriu o espectáculo, ou “Vida Boa” puseram no ar as mãos e os gritos do público dedicado.
O primeiro dia de festival terminou no palco Aguardela, com o DJ set de Xinobi, quando já muitos se tinham retirado para as suas casas e tendas, para descansar para o dia seguinte.
Fotografia: Carolina dos Santos