Dylan encontrou uma carrinha, pôs um chapéu e pintou a cara de branco para cantar sem aviso.
“Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese”, o pseudo-documentário-ficcionado começa com as imagens de um truque de prestidigitação. Trata-se de um filme (“Escamotage d’une dame chez Robert-Houdin”) de Georges Méliès, o inventor da ficção no cinema, que ensinou a todos os realizadores o que é a magia da edição. Pouco depois ouve-se Dylan dizer que não se consegue recordar de nada da digressão Rolling Thunder Revue. “I don’t remember a thing about Rolling Thunder. It happened so long ago I wasn’t even born.” Já avisámos antes e reafirmamos: Dylan nunca disse uma verdade na vida. E quando a disse, ninguém soube. Mas Dylan não deixa de ser um ser humano, apesar de ser de uma espécie diferente e também sofre. E Desire é apenas mais uma prova dessa humanidade especial.
Desire, o disco de 1976 de Bob Dylan, nasce da lendária digressão documentada em dois monumentos obrigatórios para o devoto dylanesco: The Bootleg Series Vol. 5 e Bob Dylan – The Rolling Thunder Revue: The 1975 Live Recordings. Ao longo desses dois documentos, ouvimos a criação e o aperfeiçoamento deste disco. Dylan encontrou uma carrinha, pôs um chapéu e pintou a cara de branco para cantar sem aviso. Estava reunido tudo o que precisava para esta digressão. Os músicos que se quisessem juntar eram bem-vindos. E tantos quiseram que não temos vagar para os listar todos.
É parte dessa trupe de músicos que se juntaram à Rolling Thunder que ouvimos em Desire, disco marcado principalmente pela talentosa Scarlet Rivera, uma violinista que atravessou a estrada na hora certa. Reza a lenda que certo dia Dylan – esse notório gajo esquisito – parou o carro e perguntou a uma jovem Rivera qual era a cena dela e dali nasceu esta relação frutuosa. Esta história é verdadeira ou falsa? Ninguém sabe, mas isso importa quando o resultado desta colaboração é tão extraordinário?
Oiça-se a canção de abertura “Hurricane”, que parece uma peça de teatro cheia de diálogos e didascálias e o violino de Rivera sempre no fio da navalha, carregado de dramatismo a complementar o vigor da voz de Dylan que quase regressa aos seus tempos de cantor folk com uma mensagem política a transmitir. Mas a verdade é que Dylan está mais interessado na forma de contar a história de Ruben Carter do que na verdade ou nas consequências da sua composição. Há tanto de mentira como de verdade nas letras, mas Dylan rege-se por uma simples máxima: “Não deixes que a verdade te estrague uma boa história”. E todos ganhamos com isso.
“One More Cup of Coffee” é uma canção que bebe da tradição musical cigana que incorpora um excelente dueto com Emmylou Harris e é um dos pontos altos deste disco (e a forma de cantar de Dylan nesta canção foi gamadíssima por Jack White em todas as canções boas que fez, louvado seja). “Isis” foi o primeiro tema composto para o disco e conta a história de um homem que deixa a mulher para ir viver aventuras e procurar glórias e depois regressar para a amada e apesar de ser uma excelente gravação, Dyaln agiganta-se ao vivo quando a canta (conferir o “documentário” de Scorcese quando Dylan, ao cantar “Isis” cerra o punho e entoa os versos “She said, ‘you been gone’/ I said, ‘that’s only natural'” para depois, num esgar de exasperação, seguir com os versos “She said, ‘you gonna stay?’/ I said, ‘if you want you me, yeah!'”).
Mas há também takes mais fracos nesta colheita. “Mozambique” nasceu, supostamente de um jogo para ver quantas palavras Dylan e o seu parceiro de escrita para este disco, Jacques Levy, conseguiam fazer rimar com “-ique” e é meio desinteressante. “Black Diamond Bay” é também uma canção menos memorável, mas que faz o seguimento para uma das canções milagrosas de Dylan: “Sara”, talvez a mais autobiográfica de todas as composições dylanescas.
A Thunder Revue aconteceu enquanto o casamento de Dylan com Sara Lownds desmoronava e a sua presença assombra este disco e essa digressão. O fim desse contrato está já escancarado no magnífico e trágico Blood on the Tracks (disco a que só prestei atenção por recomendação do Gonçalo e deixo-te aqui um agradecimento por isso, amigo), o que torna ainda mais estranha a inclusão de “Sara”, a extraordinária canção de amor que encerra Desire, no alinhamento deste disco. “Sara, oh Sara / Glamorous nymph with an arrow and bow / Sara, oh Sara / Don’t ever leave me, don’t ever go”, canta Dylan depois de uma mão cheia de versos onde explica como foi responsável pelo afastamento da mulher que é o amor da sua vida. No fim do filme de Scorcese ouvimos Dylan dizer: “O que sobrou da Rolling Thunder? Nada. Só cinzas”. Fala da digressão ou da relação com a mulher que amou? O que é verdade, o que é mentira? Se calhar é tudo só um truque de prestidigitação ou uma interpretação kabuki.