A Pointlist levou a oitava edição do Black Bass Fest a quatro salas de Évora e Portalegre em dois dias cheios de Rock’n’Roll e cultura alternativa.
O Altamont foi até Évora, correu a maratona rock’n’roll até à meta e sobreviveu – corpos moídos e alma cheia – para vos contar tudo.
Para a realização desta reportagem, contámos com a ajuda de um velho amigo do Altamont – Nuno Cunha, um melómano inveterado e rato de lojas de discos.
Transcrevemos aqui parte da conversa que realizámos no dia seguinte, ainda a recuperar energias, em jeito de balanço do Festival.
16 de Novembro – Sociedade Harmonia Eborense (SHE)
Rui – A primeira banda que nós vimos foi Meia Fé – uma jovem banda de Lisboa!
Nuno, chega-te à frente!
Nuno – Foi a primeira atuação. Uma banda de rock … uns miúdos novos. Como é que se diz … para a frentex a tocarem assim em crescendo.
Primeiro com com um pouco mais de calma e depois ficarem mais audazes à medida que a canção ia evoluindo, tendendo a repetir muitas vezes as últimas frases e a acabar quase sempre assim, em estado de loucura … num frenesim … em gritos!
R – Sim, recorreram muito a uma dinâmica de 2 vozes, uma voz feminina e uma masculina. Mas havia mais vozes … o resto da banda também faz colaborações vocais.
Eu diria que também que o som deles é um pouco mais para o indie.
N – Fez-me lembrar um pouco os anos 90.
R – Mas, até diria mais indie do que do que rock com … alguns tons, se calhar, mais próximos do punk … mas uma coisa muito, muito contemporânea. Apesar dessa influência dos 90, ou se calhar por causa da influência, não sei.
Outra nota, é que a banda começou logo a mexer com o público. A malta chegou-se logo à frente do público, alguns momentos de slam dance …
N – Começou a haver algum mosh também … como que a prepararem-se para o que viria a seguir.
R – Sobre Meia Fé, queres dizer mais alguma coisa?
N – No cômputo geral gostei da atuação deles …
R – Aqui chegados, aos Meia Fé, seguiram-se os 800 Gondomar, banda que esteve um bom pedaço de tempo fora dos palcos e que voltaram agora recentemente com um novo single e concertos no Porto e em Lisboa.
O que tens a dizer sobre o concerto deles no Black Bass, Nuno?
N – A banda toca num registo mais hardcore, um hardcore muito, muito rápido.
Gostei da sintonia entre os 2, entre o baixista e o guitarrista.
O Baterista, que era o vocalista principal, fez questão de se apresentar – a pôr-se ao alto, na bateria.
E foi uma dinâmica sempre muito veloz e houve fases teatrais. Tanto o guitarrista como o baterista, saltavam para o público e divertiam-se lá no mosh. Fizeram lá uma espécie de peça teatral. Com movimentos muito teatrais.
Gostei muito da atuação deles. Para mim foi provavelmente uma das melhores atuações do festival.
R – Houve uma coisa que me surpreendeu muito. Desta banda, eu tinha ouvido algumas faixas antes, e como nunca tinha visto ao vivo, tinha a ideia que o som haveria de ser um bocadinho mais sujo, mais próximo de um garage low-fi, e surpreendeu-me a “qualidade” sónica, a forma como os três estavam tão bem entrosados.
Eu também gostei imenso deste concerto. E uma das coisas que me pareceram mais interessantes, foi a mudança entre os diferentes registos que eles conseguiram imprimir … diferença de andamentos, com quebras na tal voragem mais hardcore … como aquele momento muito forte quando o baterista e o vocalista se lançam numa dança lenta apoiados pelas mãos do público – como se fosse um pas de deux, em modo crowd surf – só com o baixista a fazer um fundo musical quase hipnótico.
N – Sim, eles lidaram com o Público de uma maneira muito própria, por assim dizer … eles estiveram muito bem e deram um bom espetáculo.
17 de novembro – Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar (SOIR JAA)
R – Do cartaz de sábado constavam 9 bandas, distribuídas por dois momentos: duas bandas durante a tarde para preparar o menu de degustação noturno composto por sete pratos de peso.
Eu vou falar brevemente da sessão da tarde – em que o Nuno não pôde estar presente.
O pontapé de saída foi dado pela recém formada banda lisboeta “Os Overdoses” – um trio com 2 guitarras e uma estação de maquinaria, por assim dizer – teclados, sintetizadores e drum machine – que jogam, igualmente, na dinâmica entre 2 vozes, uma masculina e outra feminina.
O som d’Os Overdoses anda um pouco pela área do Garage Rock e do Rock’n’ Roll mais “tradicional”, ao qual é acrescentado uma aura mais contemporânea com a utilização dos instrumentos eletrónicos.
No entanto, foi precisamente aí – na eletrónica – que o concerto acabou por ser muito complicado. Problemas de ligação à drum machine levaram a uma grande demora no arranque do set d’Os Overdoses e, mesmo a duas ou três falsas partidas. Temeu-se que não fosse possível, seguir em frente … mas tudo acabou por se resolver através do good old desenrascanço e da boa vontade. Foi recrutado um baterista voluntário da audiência e o trio tornou-se em quarteto improvisado.
Apesar da precariedade da solução encontrada, o resultado final acabou por ser interessante, reforçando-se muito a componente orgânica do som!
Seguiu-se um quarteto de Barcelona, de seu nome Enamorados. Uma formação clássica Guitarra, bateria, baixo e voz para atacar também ela uma versão mais clássica do Rock’n’Roll com um gostinho a punk, punk pop … tudo carregado de grandes doses de energia que passou para uma plateia entusiasmada e dançante.
Depois do jantar, a primeira banda a actuar foram os Travo, um quarteto vindo de Braga. Nuno, o que achaste da atuação dos Travo?
N – Pareceu-me ter muitas influências do Garage e do hard rock dos anos 70.
Gostei muito do vocalista. Da forma como cantava – que quase beijava o microfone – e da utilização do inglês.
Gostei particularmente desta banda. Foi para mim uma das melhores bandas do festival, com um som que é a minha praia!
R – Para mim, foi a maior e melhor surpresa de todo o Festival.
Eu confesso que também gostei da voz, mas nem foi isso que me puxou mais. Eu penso que a voz encaixa super bem no som que eles praticam.
No entanto, o que me agarrou nos Travo foi mesmo o diálogo entre uma secção rítmica poderosíssima e o belo jogo entre as guitarras. Eu penso que o som dos Travo andará precisamente mais pelo jogo entre uma base Doom/Stoner Rock com muitas viagens Space Rock pelo meio.
Eu achei mesmo espectacular – fiquei mesmo agarrado e estou muito curioso para ouvir o último disco dos Travo – Astromorph God, editado há pouquíssimo tempo.
De seguida, e igualmente do Minho, vieram os Unsafe Space Garden, de quem tu gostaste mesmo muito, não foi Nuno?
N – Sim, sim … Para mim, foi a melhor atuação do festival. Fiquei deslumbrado. Mesmo nos tempos que correm, ainda há qualquer coisa que nos deslumbra.
E não só achei os muito profissionais, como reparei que todos combinavam muito bem. Havia uma grande unidade entre eles. E, depois, a cada toque, a cada momento, cada segundo que ia passando, estavam sempre sempre a variar. Mas, não demais, tanto quando chegavam a um ponto em que fazia sentido esticar, esticavam.
Gostei de todos os elementos, é muito teatral, e passaram por todos ou quase todos os estilos, desde o pop quase ao metal.
Gostei mesmo deles.
R – Confesso que esta banda era a que eu tinha mais curiosidade para ver ao vivo, não só porque ainda não tinha visto como transportam o som dos discos para cima do palco, como o próprio disco – e falo mais especificamente de Where’s the ground, de 2023 – me deixou muitas dúvidas. É uma questão mais pessoal, porque quando eu digo dúvidas, não estou, não estou a duvidar da qualidade … mas mais perceber se realmente gosto ou não.
Nesse sentido, eu penso que eles ganham muito com a passagem para o palco – ou, pelo menos, para um palco como o da SOIR.
E se eles se tocam muito bem – tecnicamente são espetaculares – tocam também muito bem juntos, nota-se que há ali um entrosamento muito, muito grande …
N – Estamos a falar de uma banda de 7 elementos … não é fácil!
R – Sim, sim .. Assim numa aproximação onda Zappa versão século XXI!
N – Também os achei muito Zappatianos!
R – Quando falo em Século XXI, falo por um lado no tipo de som que utilizam nas suas “colagens”, por assim dizer … uma vez que utilizam sonoridades mais contemporâneas – para além do Jazz e do Rock Progressivo do Zappa.
Onde quero chegar, é que eles não terão o mesmo tipo de som, mas o mesmo tipo de abordagem, a mesma dinâmica … e como dizias há pouco, mais pop, mais rock pesado … quase heavy metal.
N – Tudo muito progressivo.
R – Sim sim, tudo muito progressivo, e às vezes, quase orquestrado, o que também liga a essa outra dimensão que tu falaste que é a parte teatral, como aqueles momentos em que a música pára e eles falam com com audiência.
N – Era um rapaz, uma rapariga a cantar.
R – Sobretudo … porque participavam quase todos! Coros espetaculares!
Depois, outra dimensão que associo ao século XXI, está relacionada com a mensagem – com as temáticas das das letras – que me parecem muito focadas nas emoções.
Passamos então para para uma banda americana que foi a terceira banda da noite, os Lord Friday the 13th – que vieram de Austin, Texas até ao Alentejo.
N – Eles começaram o concerto com um som um pouco anos 80, muito próximos do Post-Punk.
O vocalista começou-se a revelar desde muito cedoI Entrou vestido com uma longa capa preta e a partir do momento que o tira, parece uma borboleta a sair do casulo.
Musicalmente acho que manteve sempre um pouco esse registo, não foi o que te parece?
R -: Eu, por acaso, não concordo. Em primeiro lugar, devo confessar que, de todas as bandas, foi aquela que achei menos interessante, mais “normal” em termos do som e a que me chamou menos à atenção.
Eu senti que as canções assumiam diferentes registos – o que até pode ser uma coisa boa. Houve temas mais próximos do post punk – como disseste – e aí a voz dele não me convenceu.
Depois, quando muda para um registo mais próximo do Punk-rock – mais rápido, mais gritado … a voz já me pareceu funcionar mais, e o som da banda, no seu todo, resultar numa coisa mais interessante. No entanto, não me pareceu nada de novo.
Penso que a banda vive mais da estética e do jogo teatral também – ainda que num registo muito diferente dos Unsafe Space Garden.
N: É um teatro muito simples, não é?
R: Sim, é uma onda mais próxima do rock chock, do glam é outro outro universo.
A banda é composta por 4 elementos, sendo dominada pelos irmãos Lenz – o vocalista e a guitarrista – e tanto o baterista como o baixista vão variando.
A mim, pareceu-me que a guitarra serviu quase sempre para criar ali uma parede de som e que quem conduzia, na prática, a linha harmónica era o baixista, enquanto o baterista – fabuloso- aguentava o ritmo sozinho.
E de Austin vamos até às Caldas da Rainha, porque foi de lá que vieram os Cave Story – um quarteto com uma história considerável no panorama indie nacional.
N – Por acaso, olha, desculpa-me, mas tenho que pegar nas tuas palavras sobre a banda anterior e dizer que eu achei esta banda, a menos interessante do Festival.
Um Rock, diria .. clássico, sem grandes variações, muito terra-a-terra. Não fiquei assim com uma grande impressão.
Tocaram bem? Sim. A voz estava boa, em sintonia com o som .. sim. Mas não achei nada de relevante. Aliás, não consigo enaltecer, dessa atuação!
R – Bem aqui, discordamos radicalmente!
Para mim foi uma das melhores atuações da noite! Ainda por cima, já os tinha visto na SMUP no princípio do ano, e senti uma diferença muito grande entre os 2 concertos. E não que o anterior tivesse sido fraco, mas porque achei este mesmo bom.
Por um lado, o som estava muito bem trabalhado, ouvia-se tudo muito bem!
Tal como nos Travo, uma secção rítmica brutal acompanhada com um jogo entre as duas guitarras que me encheu as medidas. A juntar a isto, eu senti uma enorme diferença na voz … o som super claro, a perceber-se muito bem o que ele cantava.
Não sei se haverá aqui uma evolução baseada “apenas” no maior entrosamento da banda, mas desconfio que o trabalho do técnico de som, também terá contribuído muito para isso.
É certo que no som dos Cave Story se notam algumas influências de grandes bandas indie – como os Sonic Youth ou os Yo la Tengo – mas sinto que eles vão cada vez mais mostrando a sua personalidade e que têm um dos discos mais interessantes do ano.
Vamos então à próxima banda da noite, os Hetta.
N – Se eu achei a banda anterior desinteressante, mas boa; no caso dos Hetta achei aquilo tudo igual do princípio ao fim, muito repetido … ruído e berros …, que lá está, me pareciam todos iguais.
R – Ok! A meu ver, os Hetta tocam um hardcore com alguns laivos de Mathcore e de Metalcore – sobretudo nas guinadas angulares da guitarra e no ritmo pulsante e maquinal. De alguma forma, será mais uma banda “filha” dos Converge.
Eu não comungo da tua opinião e posso dizer que apesar de ser um som “difícil”, eu gostei do concerto. Eu sinto que os Hetta serão uma daquelas bandas em que é preciso ouvir muitas vezes para se perceber melhor o que é que está ali a passar.
Foi um concerto em que a banda moveu muito o público. Mosh praticamente contínuo, muito crowdsurf, muito movimento! E acabou com uma quase invasão de palco, com tanta gente em cima do palco quanto na plateia. É uma banda que tem, pelo menos, esse mérito de colocar a sala a vibrar.
Eu sinto que vou ter que vou ter que lá voltar mais vezes para os entender. Sinto que é um daqueles sons que se estranha. Agora temos de ver se se entranha, também!
Prossigamos agora para os Sunflowers.
N – Eu gostei muito dos Sunflowers, … eles tocam um bocado na minha praia, mas são muito sónicos, têm uma personalidade muito underground dos anos 80, a fazer lembrar um pouco, por vezes, os Sonic Youth, sobretudo nas partes mais agressivas.
E achei a baterista muito boa. Gostei muito.
Era uma banda que eu tinha muita curiosidade em ver e acho que cumpriram e que estiveram muito bem.
R – Os Sunflowers também já tinha tido a oportunidade de ver este ano na Zé dos Bois assim como de ouvir o disco deste ano umas tantas vezes.
Tendo gostado do concerto, houve, no entanto, uma coisa que me surpreendeu menos positivamente – e isto é muito pessoal, que foi ter sentido que no concerto de ontem, os senti menos diversos do que me parece serem em estúdio e que me pareceram na ZDB.
Senti que neste concerto, estiveram quase sempre no mesmo andamento – a abrir – mostrando um pouco menos outras dimensões do seu som … sim, o indie e o garage continuaram lá, assim como o seu lado muito dançável, mas, senti-os um pouco menos arty e psicadélicos do que eu estava à espera.
Por outro lado, e num sentido inverso do que tinha acontecido nos Cave Story, a qualidade de som já não esteve assim tão boa. Outro dos trunfos dos Sunflowers, na minha opinião, é o jogo das três vozes, e apesar de continuar lá, o som das vozes pareceu-me um pouco mais sujo e menos perceptível.
Penso que a abordagem deles para este concerto, foi uma abordagem mais dançável, como que a preparar as coisas para os Máquina.
N – Concordo, acho que foi a melhor “passagem” entre bandas de todo o Festival. Ambas num registo … sim, muito dançável!
Foi uma banda que pôs toda a gente a dançar.
Realmente, eu consigo compreender porque é que esta banda está a ter o sucesso que está a ter porque anda pelas bocas do mundo.
Eles conseguem tornar um som supostamente som pesado, em algo muito dançável.
Os Máquina pegam uma linha de baixo que depois prossegue na bateria, como se entrassem num mundo quase … quase tecno, encontrando ali uma batida hipnotizante que faz com que toda a gente comece a saltar e a vibrar.
Não sei se isso não será um dos seus segredos … mas, sim, compreendo, porque é que eles são tão bons e não e eles tiveram uma muito boa prestação. Foi a primeira vez que os vi, e se não tivesse tão cansado, iria delirar ainda mais.
Puseram toda a gente a dançar, foi uma bela banda para acabar o festival.
R – É, de facto, eu acho que eles têm um som muito cativante, muito eletrizante! Como dizes, estava toda a gente a dançar, toda a gente aos saltos. Houve mesmo ali momentos em que se sentia a eletricidade da audiência e em que quase chegava ao transe colectivo.
Não querendo, de forma alguma repetir-me, voltei aqui a ter a mesma sensação que tive com os Sunflowers. Também nos Máquina senti que a sonoridade no concerto não correspondeu à variedade do som que trazia na minha cabeça de ouvir o disco e da outra vez que os pude ver ao vivo.
Eu penso que eles integram muito bem um largo conjunto de elementos sónicos, não só essa abordagem quase tecno, como disseste, mas também a cadência Kraut que passa das linhas de baixo para as vocalizações do baterista.
Ontem, confesso, que não senti tanto os outros elementos que apanhei tanto a ouvir o disco como no outro concerto, nomeadamente o psicodelismo e o quase prog das guitarras e dos efeitos que eles constroem com os pedais.
Mas mas olha aí, a culpa pode ter sido, se calhar, também do cansaço a fazer efeito nos meus ouvidos. Foi uma grande sova, foram 9 bandas, desde as seis da tarde até praticamente às cinco da manhã!
N – Exatamente!
R – Provavelmente os meus ouvidos também estariam um pouco menos apurados para perceber todas essas essas nuances que, na minha opinião, é uma das coisas que torna também esta banda tão interessante.