Até pode estar a fazer discos mais convencionais (e não menos perfeitos ou originais, por isso), a fazer tournées e a dar algumas entrevistas nos últimos anos, mas Bill Callahan continua a ser um mistério. Mais, continua de forma quase sádica a cultivar esse estatuto, jogando uma charada de luz, sombra e reflexo que, quando pensamos que já o entendemos e o que o move, nos foge novamente.
Os seus últimos três discos, Sometimes I Wish We Were An Eagle, Apocalypse e Dream River são, pura e simplesmente, três obras-primas absolutas, sendo que nos últimos dois – quase gémeos no imaginário e nos motivos – Callahan depurou ainda mais o seu som, a caminho de instrumentações esparsas e simples, com a sua maravilhosa voz de barítono carismático bem no centro das operações. Daí que muita gente tivesse pensado que, eventualmente, o autor que assinava os discos enquanto Smog havia, finalmente, serenado, estabilizado, amadurecido em todos os sentidos.
E agora, menos de um ano depois de Dream River, isto. Isto é Have Fun With God, nada mais nada menos que uma remistura integral, em dub, desse fabuloso disco de 2013. Isso, dub.
O dub é, na prática, a manipulação de uma gravação original, utilizando eco, ‘reverb’, baixos e outros efeitos, para salientar umas partes e omitir outras, como que puxando por elementos à custa de outros. Acontece que, quando pensamos em dub, pensamos na Jamaica, e nas míticas gravações aí feitas desde os anos 70, pelos grandes mestres do dub que trabalhavam em cima de músicas reggae, tendo apenas um gravador de quatro pistas à disposição.
No entanto,onde o dub clássico é quente, narcótico, abafado, claustrofóbico até, Have Fun With God soa a dub de laboratório. Francamente, soa a dub de branco, que é exactamente aquilo que é. Felizmente não é só isso, claro. É Callahan a brincar connosco e a explorar novas avenidas que, na sua mente, haviam ficado disponíveis aquando de Dream River, e que ele não havia explorado totalmente.
O homem responsável pela manipulação é Brian Beattie, o multi-instrumentista que já havia trabalhado no disco anterior e que fica agora, mais uma vez, com a tarefa de misturar o som. Sendo que, claro, a mistura neste Have Fun With God é tudo, já que aparentemente nada foi regravado de Dream River.
Este sonho dub de Callahan é naturalmente indissociável de Dream River (que o autor destas linhas considerou o melhor disco de 2013, ponto). Tendo eu tão presente esse disco, tenho alguma dificuldade em avaliar como julgaria Have Fun With God um ouvinte que não conhecesse Dream River. Mas, na verdade, duvido que alguém chegue a este disco de dub se não for fã do original. E, se tal acontecesse, ganharia muito mais em ir ouvir essa obra-prima, do que este exercício de estilo que é curioso, mas pouco mais.
Tendo Dream River como pano de fundo, há aqui outro problema: quem conhece bem esse disco está sempre à espera de ver as músicas (a sequência é exactamente igual) desenrolarem-se naturalmente na beleza das versões originais, apenas para ser frequentemente desiludido com a desconstrução que Callahan faz das suas próprias músicas. Outro problema é, em modo dub, a primazia dada a alguma percussão e aos baixos, em detrimento da espantosa guitarra de Matt Kinsey, que em Dream River eleva a já genial base a todo um novo patamar de beleza.
O que temos, então, aqui? Uma peça de um puzzle chamado Bill Callahan, mais uma. Estas peças, ao longo dos anos, podem nem sequer encaixar visivelmente umas nas outras, mas uma coisa é certa: são sempre interessantes. O mesmo se pode dizer deste Have Fun With God: não fica como um disco marcante do percurso do seu autor, mas é um exercício curioso e até agradável de ouvir.
A verdade é que só alguém como Bill Callahan – que aparece na contracapa do vinil de calções e como que a rir-se desta marotice – poderia agarrar em algo tão belo e tão perfeito como Dream River e desconstruí-lo paulatinamente.
Enquanto continuar a fazer discos tão profundos e brilhantes como os anteriores, que Callahan se divirta. Com deus ou com o que quiser.