Clarice Falcão entrou-me no outro dia pela vida adentro e não mais saiu. A princípio, a patroa não achou piada nenhuma a que esta Amélie Poulain do Recife – com vinte e quatro anos e grandes olhos azuis – andasse o dia todo a cantar pela casa; mas depois até ela acabou por se render às suas melodias saborosas e descomplicadas, que com apenas três acordes e meio se grudam logo aos ouvidos, feito pastilhas gorila de morango, tamanho gigante. Os arranjos musicais são também simples e despretensiosos, para nunca desviarem a nossa atenção das histórias que Clarice nos conta numa intimista primeira pessoa. Um único tema obsessivo (ou não se chamasse o álbum Monomania) atravessa quase todas as canções: a tragicomédia do amor, contada sempre de um ângulo engraçado que subverte os lugares comuns das love songs. Clarice tem um dom raro, o de encontrar sempre um lado cómico no coração mais destroçado, uma verdadeira desmacha-prazeres para todo o empenhado suicida: “quando eu te vi fechar a porta/eu pensei em me atirar pela janela do 8º andar/invés disso eu dei meia volta/e comi uma torta inteira de amora no jantar”. Ninguém mais no mundo faz letras assim, tão inesperadamente espertas e engraçadas. Peço desculpa pela heresia mas tipos como o Morrissey, o Jarvis Cocker e o Chico Buarque (letristas que venero como deuses) estão mais próximos do analfabetismo de José Cid do que da escrita leve, inventiva e espirituosa de Falcão.
Clarice é uma mulher de sete ofícios: além de cantora/songwriter, é actriz, comediante (é a miúda gira da Porta dos Fundos) e guionista, e todas essas facetas se reflectem nas suas canções. Da sua experiência de actriz roubou as metáforas cinematográficas de “Fred Astaire”, com os seus “planos”, “contraplanos” e “figurantes”. Dos seus skills de comediante, escreve versos assim: “médicos nas UTIs/larguem seus bisturis/que a gente voltou/pacientes à beira da morte/reparem que sorte: a gente voltou”. Do seu know how de guionista, utiliza com mestria a tensão entre texto e subtexto em “Eu Esqueci Você”: se o texto diz sempre eu esqueci, o subtexto insinua qualquer coisa como merda, que não há maneira de te conseguir esquecer (“eu esqueci você/e se um dia eu te ligar de madrugada em desespero, é engano”). É isto que eu gosto em Clarice: uma mulher inteligente e sensível que não subestima a inteligência e sensibilidade de quem a ouve. Não estou com aqueles que argumentam que na música pop só interessa a música, sendo as letras mera espuma irrelevante. Se as palavras lá estão, é para serem devidamente escolhidas. Por mais encantadora que seja uma melodia pop, se não houver uma boa cabeça por detrás, estaremos sempre perante uma canção incompleta.
Uma última nota em relação à forma como o álbum está a ser distribuído. Monomania é vendido sobretudo em suporte digital, tendo-se tornado rapidamente um sucesso comercial no iTunes e derivados (o suporte físico existe mas é difícil de arranjar). O culto à sua volta começou também na net bem antes do álbum ser gravado. Clarice não perdia tempo: logo que escrevia uma canção, lançava no youtube um pequeno vídeo caseiro, só ela, o violão e o sofá. As visualizações cresceram de dia para dia, tornando Clarice no fenómeno mediático que ela é hoje no Brasil. A nossa pernambucana favorita fala da enorme liberdade que representa não estar presa a nenhum contrato editorial: quando quiser mostra uma canção sua na net, chegando logo aos seus fãs, sem as desagradáveis interferências das editoras discográficas. A nós, que pertencemos a uma geração ainda muito apegada ao formato disco (seja o vinil, seja o CD), pode-nos meter alguma confusão o interface frio e imaterial que Falcão escolheu para mostrar as suas músicas. Mas não adianta continuarmos em negação: o que Clarice nos mostrou foi apenas a antecâmara do que será o futuro da indústria musical. Quando o iTunes, o Spotify e os epidémicos Torrents crescem ao ritmo que crescem, é só uma questão de tempo até os discos se tornarem uma extravagância residual de um bando de lunáticos que, como nós, nunca conseguirão viver sem eles.