Os Beautify Junkyards, que das cinzas dos Hipnotica nos saltaram sem remédio ao caminho no final de 2013, estão de volta menos de dois anos depois. E se, no homónimo disco de estreia, nos haviam conquistado logo à primeira, agora a parada era mais alta. Esse primeiro disco era composto por nove músicas de outros autores, de Nick Drake a Donovan, passando pelos Mutantes ou pelos Kraftwerk, mas passados pelo filtro folk pastoral desta banda. Era, por isso, um disco mais imediato ou mais “fácil”, uma vez que assentava em músicas familiares que um melómano como deve ser já tinha obrigação de conhecer. Com este novo The Beast Shouted Love, o jogo é diferente. Já não se trata apenas de dar um tom folk pastoral e narcótico a uma base pré-estabelecida, mas sim criar uma sonoridade e uma identidade, de raiz.
E a verdade é que, entre dois discos com tamanha diferença “conceptual”, a banda conseguiu uma coerência assinalável. A tal ponto que, ao final de apenas duas obras, podemos dizer que existe, já, uma sonoridade Beautify Junkyards, com tudo o que isso implica. Tal como no disco anterior, também aqui a gravação assentou em improvisos a céu aberto, em busca da paz, da tranquilidade e de alguma transcendência que a banda já nos explicou, em entrevista recente ao Altamont. A diferença é que, agora, o grupo tinha um desafio maior, a criação de originais, e já sabia ao que ia. Contrapondo à exploração quase a brincar da estreia, agora era altura de fazer o aguardado segundo disco de um agrupamento que queria construir em cima do que já tinha feito. Também aqui, houve sucesso, uma vez que não encontramos perda de frescura no resultado final.
O que este disco nos traz são 12 temas com uma linguagem muito marcada. O terreno continua a ser a folk, sobretudo de inspiração britânica dos anos 60, com os adorados ecos de Vashti Bunyan e de Nick Drake, pontuada por um suave psicadelismo que nunca chega a ser eléctrico. O próprio tema de abertura, “Sun Wheel Ceremony”, começa com a natureza, o som primordial dos pássaros, remetendo-nos para o aconchego bucólico de From Gardens Where We Feel Secure, de Virginia Astley. As letras são maioritariamente cantadas em inglês, com uma ou outra investida bem sucedida na língua de Camões, sem que se perca qualquer coerência. Aqui e ali, a electrónica surge, mas ao contrário do que se passava nas camadas e camadas trabalhadas dos Hipnotica, nos Beautify Junkyards esta nunca é a base, apenas aparece como complemento à estrutura “humana” das canções.
Por comparação com o disco de estreia, podemos dizer que se perde alguma luminosidade e variedade (o que é natural, dada a vastidão do universo de originais utilizado então); mas ganha-se em profundidade (os temas são mais trabalhados, às vezes como pequenas caixas de música) e, sobretudo, em coerência, do primeiro ao último tema. Este é, aliás, um disco para se ouvir como um todo, do princípio ao fim. Tal como a sonoridade que serve de inspiração, este álbum é um símbolo deliciosamente anacrónico, numa época de mp3 e de tops de hits no Youtube. Este disco leva-nos para uma altura em que nada disso existia, e em que nada disso era preciso para fazer arte. Apenas uma visão, um conjunto de pessoas, instrumentos, a natureza.
Ao segundo disco – mais difícil que o primeiro pelos motivos já explanados – os Beautify Junkyards saem do desafio com mestria e nota alta. São já uma força estabelecida, numa música contemporânea portuguesa que tem estado cheia de vitalidade mas sem qualquer outro grupo a fazer deste som, ou a trilhar estes caminhos. The Beast Shouted Love já anda por aí. Façam o favor de escutar este delicioso grito.
PS: menção obrigatória para mais um magnífico trabalho gráfico na capa e não só, desta feita a cargo da extraordinária Joana Raimundo, responsável por boa parte do grafismo do Altamont.