A luz era uma de mistério. Condizia com as duas figuras enigmáticas que em palco se apresentavam – chamavam-se Tengger e vinham da Coreia e do Japão. Cabeça caída, que nem dois shoegazers; o rapaz nos fios e botões, a rapariga a interagir com um harmónio, cujo som era filtrado pelos pedais que ao lado do instrumento figuravam. Por entre os cabelos compridos e femininos emergia uma face, por fim, de onde uma voz doce e tímida cantava notas de transe, quase a parecer um bebé à nascença. A luz tornava-se clara, o sol aparecia na penumbra de som e ruído bom. A luz aumentava com a vida, materializada em crescendos de intensidade e delays cada vez mais saturados e abstractos.
O som acalmava. Com a canção seguinte, entrava em palco o violinista português Gil Dionísio. Alado da sua costela experimental, no seu corpo flectido sentia todos os efeitos sonoros e variações vocais que fazia. As variadas convulsões sonoras que íamos ouvindo mostravam-nos um experimentalismo dedicado e quase devoto. Por momentos, a ouvir tanta coisa boa e diferente em simultâneo, sentimo-nos num concerto de Animal Collective. Entretanto, o som tornava-se total enquanto as luzes intermitentes eram drogas que entravam de rompante nos nossos globos oculares, sem lhes conseguirmos oferecer resistência. Saímos da sala por momentos; sentimo-nos em todo o lado, em todos os corpos.
A dupla Tenger saía do palco para a entrada de Doddodo, japonesa que domina com entusiasmo todos os brinquedos electrónicos que traz consigo. Começou com um tribalismo epiléptico que, em conjugação com a loucura de Dionísio, faziam uma coisa semelhante a isto, só que moderna e ainda mais cheia e delirante. O entusiasmo de Doddodo era visível nas pernas que erguia do nada e no choque que provocava com os seus beats agressivos e arrojados, arranhados ainda mais pela presença animalesca do imparável português. Aquilo que se estava a testemunhar em palco era algo genial, épico, bom e educativo, ao mesmo tempo que chocante – algum público não estava preparado para uma violação tão grande dos sentidos.
Era a vez de Gil Dionísio abandonar o palco. Este, ficava por conta de Doddodo, que sem problemas tomou conta do lugar. Prova de que as mulheres é que mandam nisto tudo. Um divertido “Obrigada!” fazia o público aplaudir e sorrir de empatia. Ouviu-se rap e j-pop, num manifesto musical que ainda não compreendemos totalmente mas que nos encheu as medidas. Tudo e nada viveu naquela efemeridade, naquele refúgio de quarta à noite, e a criança divertida e inocente não parava um único segundo, assim como a variedade de sons não acabava – as camadas melódicas e rítmicas eram inacreditáveis e saltitantes. Doddodo era maestrina da sua orquestra de mil e um artefactos espalhados na mesa: os sonhos (sons?) que punha não eram aleatórios mas sim bem calculados e conscientes. No final de um rasgar de tímpanos e paredes do auditório do Museu do Oriente, a sua canção fofinha de despedida fez abanar a cabeça até dos mais velhos presentes na sala. Uma sensibilidade caótica rara. Fecha-se o pano, findam as “electroniquices”.
Ao abrir do pano, uma flauta peculiar e sombria era tocada pela sul-coreana Gamin. Era um som tão belo e só que se ouvia o lápis que a escrevinhar esta reportagem. De seguida, chegava o primeiro elemento do grupo japonês Sixth Tongue, uma rapariga armada apenas de cordas vocais brilhantes e cristalinas. Os seus sussurros em delay faziam a ca(l)ma para a flauta repousar e a voz voltava a embalar. De um pulo, entrou em palco o primeiro dos dois percussionistas do grupo, que se juntou ao bosque sonoro da flauta e dos estalidos vocais. Entravam, depois, o segundo percussionista- o luso-descendente Marcos Fernandes – e a menina bonita – Azusa Yamada – que estaria a cargo da marimba que soava a outro planeta – com a conjugação de todos os instrumentos e músicos, parecia que éramos levados a uma qualquer tertúlia de deuses, desvanecida em pós de câmara lenta e anti-matéria.
Só nos faltava a biwa de Kyokka Okubo e a guitarra de Filho da Mãe pra completar a festa. A música ia sendo feita ora de silêncios ora de notas soltas e trémulas, conjugadas com outros mil e um aparatos sonoros que o colectivo ia descobrindo e inventando. Pelo meio, um órgão soturno invadiu os nossos ouvidos, preenchendo os espaços que restavam neles, numa meditação com todos os outros instrumentos e vozes, que nos fez evadir. Não faltaram improvisos em oqueéisto menor nem a libertação de Filho da Mãe, num meio onde podia fazer tudo o que quisesse, que soaria bem. O nosso melhor guitarrista não te meu e depressa se integrou no grupo, sem ter de passar pela chatice de ser o miúdo novo na escola. O recreio era de todos e a linguagem a mesma – a música livre. Livre de padrões e convenções. Ali, Rui Carvalho parecia encontrar a sua forma de expressão, viajando até aos antípodas sem sair da cidade. Por entre metais trémulos e tamboreares descontrolados, a guitarra surgia como mais um dos elementos essenciais do bordado sonoro em pano cru. No clímax de uma orgia do digital e do orgânico, fecha-se o pano.
E sentimos que são precisos estes diálogos e trocas de cultura. O significado de globalização é precisamente não nos enclausurarmos e dividirmos. Agora, mais que nunca, é tempo de fundir tradições e saberes para criar novos eixos culturais que nos permitam melhorar o sítio onde todos vivemos, desfragmentando os vários aspectos da nossa única cultura – a cultura humana. Brindemos a mais encontros destes.
Fotos: Francisco Fidalgo