A Rose Is A Rose Is A Rose, lançado no início deste mês, trouxe de volta Old Jerusalem. Este é o sétimo disco de estúdio de Francisco Silva, teve vários convidados e um maestro nos arranjos de cordas, Filipe Melo. Em vésperas do arranque da digressão (Old Jerusalem toca este sábado, 2 de Abril, na Galeria Zé dos Bois, dia 8 vai ao Maus Hábitos no Porto), Francisco Silva sentou-se para uma conversa em que fez quase um raio-X ao novo álbum.
Altamont: Quero começar pelo título, A Rose is a Rose is a Rose, inspirado num poema da Gertrude Stein. O título veio antes do álbum e terá moldado de alguma forma as canções, ou veio depois?
Old Jerusalem: Vem sempre depois, com todos os discos. O que existia era uma canção chamada “A Rose is a Rose is a Rose” que depois acabou, por algum motivo, parecer-me que podia dar o título ao disco. A linha originalmente vem do poema da Gertrude Stein, mas é uma expressão muito usada em outros contextos e por isso, na verdade, embora eu tenha ido buscar ao poema, o motivo por que o vou buscar não tem nada a ver com o poema, o poema não tem praticamente nada daquela ideia que eu procurava, que tem muito mais a ver com o princípio filosófico da identidade, uma coisa é o que é. Que também é formulado – em vez de a rose is a rose is a rose – às vezes diz-se que A é A. E é uma coisa banal, mas que tem muitas implicações, até estéticas e éticas, logo à partida implica uma coisa que é reconhecer que há um mundo fora de nós, que há coisas com naturezas diferentes da nossa, e que cada coisa tem a sua natureza e que é perigoso tentar ir contra a natureza das coisas. É um bocadinho essa a ideia do título e vem porque eu acho que há vários momentos em algumas canções em que o que está ali em causa é precisamente essa questão de não ir contra a natureza das coisas. Essa é a explicação.
Pois, a minha ideia era se isto viria dessa época da Gertrude Stein, início do século XX, Paris, boémia. Mas de facto, não há, no disco, esse imaginário boémio.
Não. Embora eu tenha grande apreço por esse período e por várias das criações artísticas, a vários níveis, dessa altura, nitidamente não é o universo de Old Jerusalem, nem aquilo em que eu me revejo, é uma coisa que aprecio e que está fora, enquanto há outros géneros e outras abordagens que eu aprecio e estão dentro, são eu. Mas esse não, é circunstancial.
Quanto à capa, são flores, mas não parecem rosas.
Não faço ideia o que sejam, mas não são rosas. Eu pensei nesse aspecto, mas a verdade é que a capa antecedeu o título, ou seja, primeiro há as canções, a um certo momento eu vi essa fotografia, que é de um amigo meu, e decidi que aquela era a capa. Mas eu nunca referencio expressamente, ou nunca escolho a parte gráfica, visual, para ilustrar a parte musical ou lírica. É totalmente independente, regra geral não gosto dessas referencialidades expressas. Quando muito, se houver alguma coisa de sugestão, e normalmente só eu é que percebo, então sim, mas não gosto de ver que a capa ilustra o disco. A capa é totalmente independente do disco, totalmente independente do título disco, embora, lá está, sendo flores, vais notar que não são rosas.
No entanto, tanto no título como na capa, há essa questão das flores, que remete um pouco para uma certa delicadeza – e isso, sim, está dentro do disco.
Aí sim eu tenho algum cuidado. Há vários artistas que tenho como referência, em vários géneros, que usam o choque, ou essa dissonância entre alguma coisa muito delicada que vem embrulhada numa coisa grotesca , e eu gosto desse choque, mas mais uma vez, não era eu. Aí realmente eu tenho algum cuidado, ou seja, há imagens, objectos visuais que têm a ver com a música de Old Jerusalem, e outros não. Por muito que eu até goste das imagens em si, eu vejo idealmente a música de Old Jerusalem – é delicada, sim, espero que não muito feminina, mas também com alguma dose – mas principalmente é subtil, não se impõe. Com isso também não quero que seja pano de fundo, mas não vai deliberadamente impor-se, vai deixar que seja descoberta, tem intrincâncias, tem os seus labirintos mas é para quem esteja disposto a entrar efectivamente na música, gosto que seja subtil e sóbrio. São esses conceitos que depois eu quero que estejam depois reflectidos no artwork dos discos. Não há muitos elementos visuais, é relativamente sóbrio, tem alguma subtileza, não tem texto que nunca mais acaba, é bastante escorreito, e é mais ou menos essa a relação que eu faço entre o artwork e a música. Embora uma não tenha de reflectir necessariamente a outra, tem de estar ligada por essa via lateral da subtileza.
Ainda sobre a imagem, não só a capa mas também as tuas fotografias e página oficial, tudo com o mínimo de cores, remete-me um bocado para uma certa introspecção e um disco de Outono/Inverno.
Isso é uma coisa curiosa, efectivamente é assim, e não é só com este disco. Acho que o tom de Old Jerusalem em geral é mais ou menos esse, outonal, relativamente melancólico, embora eu não consiga subscrever totalmente essa perspectiva – mas a primeira impressão é nitidamente essa. Curiosamente, eu escrevo muito sobre o Verão. Lá está, quando se está disposto a realmente entrar, ver o que é que realmente está ali a ser dito, há nuances, há matizes, há coisas que são bastante diferentes, há mais luminosidade até do que aquilo que é aparente na primeira abordagem. Eu tenho alguma inclinação para esse tipo de ambiente logo à partida e portanto, não me choca nada que se cole essa primeira impressão de outonalidade, de introspecção, a Old Jerusalem, porque de facto está lá.
E a escrita das canções? Para mim, escreves isto à lareira, num dia de frio, com um copo de vinho ao lado…
Não tem nada a ver. Nós temos sempre a tendência de idealizar de alguma forma o acto da criação, de o tornar um bocadinho independente das coisas normais do quotidiano. Eu faço isso, eu imagino quase a vida de alguns artistas que eu aprecio, agora o que é certo é que, mesmo quando os conheço, não tem nada a ver. A criação, e ainda bem, é uma coisa muito mais prosaica do que aquilo que nós… por muito que eu próprio gostasse que fosse – e em momentos é, há momentos mágicos, inexplicáveis – mas normalmente acontece enquanto tu estás com uma coisa muito banal, normalmente os temas começam com uma abordagem ou experimentação na guitarra, com afinações, andar à procura de qualquer coisa, e normalmente isso sugere algumas melodias, eu tenho sempre a tendência de introduzir logo algumas palavras, mas que vão sendo mais onomatopaicas do que coisas com sentido. E no meio desses ruídos há uma palavra qualquer que me surge e eu percebo que joga bem com este trecho de melodia, agora preciso duma rima, então vou arranjar uma coisa qualquer que rime com aquela palavra, e depois duma rima preciso do resto de uma estrofe, e quando tenho uma estrofe, já há uma história sugerida. Essa história vai sendo desenvolvida e normalmente acabamos com uma história que diz muito mais de nós – sobre coisas que nós realmente sentimos porque nos são próximas – do que tínhamos imaginado numa fase inicial. E isso é uma coisa surpreendente, há-de haver muito de inconsciente a funcionar, mesmo a questão da escrita automática tem essa vertente, nós não podemos fugir de nós próprios, lá está a tal história, somos o que somos, nós temos a nossa natureza e ela vai-se expressar de alguma maneira, vai reflectir-se ali de alguma maneira e até é surpreendente para nós, essa é a parte bonita. Mas não tem nada a ver com lareiras, às vezes tem a ver com estar à espera de um elevador, coisas muito pouco bonitas.
O disco será um pouco autobiográfico, mas doutra forma, mais inconsciente.
E às vezes, pode ser sugestão, mas há vários temas que só vários anos depois – e já outras coisas aconteceram na minha vida – mas eu olho e vejo que na realidade eu estava era a falar disto, é cristalino que está ali um problema, uma questão que numa fase qualquer era premente e não tinha a sensação que o estivesse a explorar, mas ele entra. Todas as coisas acabam realmente por entrar, de forma mais ou menos explícita, assim como há coisas que eu uso da minha vida – embora as ponha num contexto bastante diferente – estão lá pessoas e circunstâncias concretas, reais, descritas, só que com uma abordagem que não é a da minha vida, aquilo não é propriamente a minha vida, mas acaba por ser também. E esse processo lateral de escrita é curioso, porque tu és muito mais verdadeiro do que se tivesses a intenção de ser verdadeiro.
Em relação ao disco anterior, em que fizeste tudo sozinho, neste tens companhia, a começar pelo Filipe Melo, que tratou dos arranjos de cordas. Aconteceu ou decidiste que neste disco querias envolver mais gente?
Sim, foi uma decisão consciente, logo à partida, que não me apetecia nada fazer um disco como o anterior. Não que tivesse corrido mal ou que não me tivesse agradado o processo ou os resultados, mas fazer um disco sozinho, há uma altura em que é chato, na perspectiva em que não há novidade, tu estás a controlar todos os passos, portanto aquilo és tu, e vais-te revendo diariamente no trabalho que vais fazendo e portanto chegas ao final e não há nada de surpreendente. Pode acontecer mas a probabilidade é inferior. E eu realmente queria, primeiro, que houvesse mais gente no disco, era o primeiro ponto, e segundo ponto, que fossem muito mais interventivos – porque eu tinha feito discos anteriores com outros músicos, mas o tipo de abordagem que eles traziam era sempre bastante condicionada por aquilo que eu tinha em mente, portanto era mais um aproveitar as características técnicas de alguém, musicalmente, menos a criatividade real, o realmente intervir sobre os temas e fazerem-nos deles. Casualmente, deu-se a circunstância de conhecer o Filipe Melo e ele tinha interesse em fazer alguma coisa comigo. E então, algum tempo depois de nos termos conhecido, eu tinha já a ideia de começar a fazer um disco e decidi aproveitar o convite dele.
E essa colaboração teve influência na estrutura original das canções?
Não. Todos os temas são escritos mais ou menos da mesma forma, com resultados muito diferentes, com abordagens muito diferentes, mas os temas já existiam, não houve nenhum condicionamento ou abordagem específica da composição a pensar que eles iriam ter arranjos mais elaborados. Aliás, nunca escrevo para um disco, eu escrevo e depois quando há um conjunto de canções, ou quando decido que quero fazer um disco, vejo se há ali um conjunto de canções que façam sentido juntas. Portanto, quando o Filipe entrou, eu enviei-lhe as demos, algumas até bastante avançadas, do conjunto de temas que eu queria trabalhar com ele. E depois começámos a debater as formas de como poderia ele intervir ali. Encontrámo-nos em Lisboa, estivemos de volta do piano a ver ideias, a fazer um bocado brainstorming à volta dos temas e eles foram-se encaminhando. O Filipe acabou por puxar pela opinião dele, sobre o que poderia ser o grupo de trabalho e trouxe o Nelson Cascais para o conjunto dos músicos; sugeriu a questão das cordas, eu tinha no início alguma relutância mas ele convenceu-me disso e ainda bem que o fez, porque realmente ele fez arranjos excelentes, ele é um muito bom arranjador. E portanto isto foi muito determinado por esta colaboração com o Filipe a partir de uma certa altura, mas não na composição. Esse é um processo à parte, ganhou foi uma dimensão diferente. Há uma influência a partir de uma certa altura, há muito avanço e recuo em vários temas, mas eles estão escritos, não sofreram nenhuma modificação de estrutura.
Em breve vai haver concertos, vais levar a formação que gravou o disco?
Não. Eu gostava, mas não dá, por questões práticas. O Filipe é profissional da música e faz muitas coisas, nós ainda chegámos a comentar essa possibilidade de fazer um ou dois destes concertos iniciais com esta banda, mas é complicado gerir, tinha de ser programado com um ano de antecedência. Portanto a banda que vai tocar ao vivo só tem um elemento em comum com a que esteve a gravar os temas, por isso vão soar totalmente diferentes. E os temas terão de ser rearranjados em vários aspectos para se “aguentarem” sem todos aqueles elementos, logo à partida as cordas. Há realmente coisas que vão ter de ser revistas com alguma profundidade, porque os temas não podem levar aquele caminho. Mas uma coisa é certa, eles começaram com guitarra e voz, há muitas formas que eles podem assumir e é uma questão de ver o que é ajustado para cada circunstância.
E ao vivo, também se pode dizer que é um “concerto de Inverno”?
Sim, tende a ser. Logo à partida porque a música puxa para isso, até para alguma contenção. Essa parte é uma coisa que acho que gostava de trabalhar melhor, porque isto não tem de ser assim. Quando corre bem, os concertos de Old Jerusalem são leves, há interacção com o público, há muitas piadas, eu podia ser um stand-up comediant quase, em alguns concertos as coisas puxam realmente para um ambiente relaxado e isso é muito bom quando acontece. Mas muitas vezes também não chega a acontecer, e as pessoas contêm-se bastante com este tipo de música, têm tendência a ser um bocado mais reverenciais. Eu prefiro, estando a tocar este tipo de música, que haja algum nível de silêncio, porque é difícil fazê-lo doutra maneira, não é rock e é complicado quando estamos a tocar em bares e as pessoas estão a falar, mas estão totalmente no seu direito, não têm de ser reverenciais em relação ao que está a acontecer em palco, se a circunstância não é essa, num auditório as pessoas não vão pôr-se a conversar, em geral, mas num bar sim. Há ali um ponto intermédio em que eu acho que podia funcionar muito bem e que muitas vezes funciona, em que não estamos totalmente nesse ambiente de respeito pela melancolia, mas também não estamos propriamente em que a música não está a servir para nada, há um ponto intermédio que é o ideal, dependendo das salas, e nós tentamos fazer isso. Ainda não encontrei a fórmula que faz com que funcione em todas as circunstâncias, é sempre uma incógnita, pode ir para um ou para outro sentido e em algumas circunstâncias conseguimos ganhar o público à partida ou recuperá-lo a meio, e noutras perdemo-lo e nunca mais. Não sei exactamente o que é que é… mas é um trabalho para a vida.