10 000 Hz Legend é um osso duro de roer, mas saboroso até ao tutano, sobretudo se conseguirmos abrir o nosso paladar auditivo aos seus sabores sonoros menos expectáveis, tendo em conta o marco que foi Moon Safari.
O que fazer, depois de um estrondoso sucesso? Ou seja, como sair artisticamente de forma digna, depois do perfeito álbum que foi Moon Safari? Talvez tenha sido esta a pergunta que durante algum tempo permaneceu nas cabeças de Nicolas Godin e de Jean-Benoît Dunckel. A resposta apareceu a 28 de maio de 2001 e chamou-se 10 000 Hz Legend. O álbum é estranhamente belo e em pouco se compara ao marco de 1998. Talvez alguns tenham torcido o nariz aos onze temas do disco, mas nós não. Antes pelo contrário. O tempo, parece-nos, tem vindo a dar-nos razão. 10 000 Hz Legend é um excelente disco. Daqui a pouco menos de dois anos fará um quarto de século, pelo que está bem na altura de fazerem as pazes com ele, os que lhe viraram as costas em 2001. Há sempre tempo para o perdão.
O álbum abre com o magnífico “Electronic Performers”, primeiro sintoma de que alguma coisa tinha mudado nas cabeças da dupla Godin / Dunckel. O mergulho na electrónica era óbvio. Mais pesado, o som, mais pesadas, as palavras: “We are electronic performers / We are electronics”. Para início de conversa e para apresentaçãoo do que aí vinha, talvez não houvesse melhor statement. Baixo sombrio e forte, voz computorizada e um suave e melancólico piano introduzindo-se pelo meio, como uma lufada de air mais fresco em tamanha claustrofobia. O sossego e o conforto chegavam a seguir, através de “How Does It Make You Feel?”, como se os AIR desejassem fazer as pazes com quem amou Moon Safari, abraçando um pouco esse melodioso satélite que aterrou nas nossas vidas em finais dos anos noventa do século passado. A faixa seguinte, voltava a mudar agulhas. O tema “Radio #1” em nada se compara aos dois anteriores, desde logo porque dá vontade de dançar (aquele tipo de dança estilosa, em que se movem mais as ancas do que as pernas, abanando-se também um pouco a cabeça, de olhos fechados, se é que nos fazemos entender…). Perfeita chewing gum pop, como aliás se explicita: “If you need some fun / Some good stereo gum / Radio #1”. E, para que prossigam os caminhos distintos, à quarta faixa, nova mudança de rumo, desta vez com uma legend como visita. “The Vagabond” surpreende ao trazer Beck Hansen para cantar, algo que também faz em “Don’t Be Light”, penúltimo tema do álbum. “The Vagabond” transpira Beck por todos os poros, sobretudo ao Beck de Mutations (1998), e fica no ar até hoje a ideia de que um disco feito por Godin, Dunckel e Beck talvez fosse coisa que valesse bem a pena acontecer. Depois, acentuando-se a estranha beleza esquizoide do álbum, vem “Radian”, a faixa mais longa do disco, objeto que esvoaça, não se definindo bem, esfumando-se nos ares, belíssima como poucas. Nela, só os instrumentos cantam (é quase indistinta a voz de Barbara Cohen, ao longo do tema). Um momento kraut (sem motorika) à maneira do mago Michael Rother, dos tempos de Flammende Herzen (1977) e Sterntaler (1978)? Talvez, quem sabe? Com “Lucky and Unhappy” voltamos a entrar em terrenos mais airianos. A voz de Lisa Papineau faz a diferença. E nós, bem sabemos da importância que algumas vozes femininas tiveram no álbum anterior da banda, certo?
Tudo volta a mudar em “Sex Born Poison”, com as vozes vocoderizadas de suGar e Yumiko, da banda japonesa de rock Buffalo Daughter. “People In The City” talvez seja a faixa com um certo balanço mais condizente com alguns temas de Moon Safari, e que talvez por isso possa parecer (coisa que talvez não aconteça, de facto) algo distante do universo tão diverso de 10 000 Hz Legend. Entramos na reta final com “Wonder Milky Bitch”, tema narrativo que lembra (a espaços) alguns dos clássicos dos westerns de Morricone, a quem os AIR roubaram o controle e o comando. “Don’t Be Light” tem contornos épicos (aquelas cordas, aquelas orquestrações!), mas também krautianos (aqui com motorika e guitarras estridentes), um mimo! Depois, tudo termina com “Caramel Prisoner”, mais ambiental e fria do que qualquer outra (embora “Radian” esteja nessa mesma onda), mas também orgânica, suave e timidamente instrumental. É o fecho perfeito para um disco que roça a perfeição. Num certo sentido, e espero que os beatlemaniacs nos perdoem, 10 000 Hz Legend é o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band da dupla francesa.
Existir um disco assim é um autêntico regalo! Estimem-no (o mesmo é dizer ouçam-no!) e constatarão que ele nunca nos dececiona. Tem um onda hertziana de alta frequência, que viaja à velocidade da luz que existe no coração das coisas eternas.