Em Lux, estamos perante algo que é tudo e o seu contrário, mas no bom sentido. É uma espécie de pop-anti-pop com um cariz profundamente humano, que funciona e encaixa como uma luva nas imagens de marca da cantora.
É verdade. Mais um texto sobre Lux, o novo álbum da cantora espanhola Rosalía. Está em todo o lado, não é? Pois. Reels, artigos, posts, podcasts… Não se fala noutra coisa, ultimamente. Mas porquê? É curioso pensar nisso.
Motomami, de 2022, foi um sucesso esmagador. Ninguém ficou indiferente à lascividade dos ritmos latinos, dos reaggatons e seus derivados que faziam este trabalho pular. El Mal Querer, o seu antecessor, de 2018, foi aquilo que os ingleses chamam de “breakthrough album”, o disco-revelação que a trouxe à ribalta com uma inovadora e rejuvenescida abordagem ao universo do flamenco. Los Angeles (2017), o seu trabalho de estreia, acabou por passar despercebido apesar de ser um bonito cartão de visita ao talento desta jovem.
Três álbuns, três posturas completamente diferentes. Motomami, que surge quando o universo sonoro latino já se cimentava nos tops mundiais, fez muitos acreditar que Rosalía tinha encontrado a sua casa: música que coincidia com a sua energia, irreverência e juventude. Depois surge “Berghain”, o primeiro single deste novo trabalho, e toda a gente ficou baralhada. Por um lado, por causa da surpresa nesta nova mudança de registo, por outro, o impacto musical da canção – orquestrações sinfónicas que nos gritam ao ouvido um emocionado desamor jovem – era esmagador. O mundo inteiro começou a teorizar sobre esta mudança, os significados escondidos da canção, o caminho que seguiria o novo disco e muito mais. Depois pudemos ouvir o álbum completo e tornou-se bastante óbvio que tínhamos virado uma página importante, a reboque do talento inquestionável de uma jovem com pouco mais de trinta anos. Os fãs mais acérrimos regojizaram, os menos fãs deixaram de ficar indiferentes e quem gosta de música ganhou um novo fortíssimo candidato a disco do ano. Como seria possível não falar de tudo isto?
Lux é a expressão física de uma nova persona de Rosalía. Há uma maior maturidade, as letras são mais refinadas, os temas que as inspiram são menos triviais e toda a parte instrumental ganha uma elevação de que não há memória – pelo menos eu não a tenho – na história mais ou menos recente da música pop. Sim, porque isto é um disco pop. Não é por ter orquestras e canto lírico que o deixa de ser – e nem era preciso a própria Rosalía o dizer. Canções açúcaradas e jovens como “Reliquia” – “No soy una santa pero estoy blessed” – ou “La Perla” e “Sauvignon Blanc” marcam presença e não falta sensualidade que pinga suor em canções como “Porcelana” ou na óptima “Dios Es Un Stalker” – que grande título! Mas por que é que esta pop é diferente?
Ignorando quem discute o que é ou não é pop ou os obcecados em enumerar os seus limites, a definição que assumo é que este género é caracterizado pela sua capacidade de apelar a uma franja de público considerável, tem especial facilidade em infiltrar-se nas nossas cabeças e vidas e é pautado por melodias e letras relativamente simples. É precisamente nesta última área que acho que Lux se eleva. Todos os outros pontos comprovam-se: este disco é universal e toca todo o tipo de pessoas (até Pedro Sanchez, o presidente do governo espanhol, já se pronunciou sobre ele) e é difícil parar de o ouvir quase em loop. Porém, nada nas letras ou nos instrumentais é simples ou preguiçoso. Nada parece feito para cumprir o checklist daquilo que está “a bombar nas redes” e são inúmeras as camadas que podemos descascar neste trabalho: das canções aos instrumentais, os temas abordados, as colaborações (que bela surpresa descobrir os Yaritza y Su Esencia), o saltitar entre idiomas e por aí fora. Que belíssima cebola!
Estamos perante algo que é tudo e o seu contrário, mas no bom sentido. É uma espécie de pop-anti-pop com um cariz profundamente humano, que funciona e encaixa como uma luva nas imagens de marca da cantora: uma sensualidade musical, o papel do flamenco e do folclore espanhol e, acima de tudo, um talento para o canto absolutamente inquestionável. Oiça-se, uma e outra vez, a impressionante “Mio Cristo Piange Diamanti”, “La Yugular” ou mesmo a faixa de abertura, “Sexo, Violencia y Llantas”, todas elas verdadeiros tratados sobre como fazer levantar até os pelos mais pequeninos do fundo das costas.
Saber mudar de pele com tanto equilíbrio e sem perder identidade é uma característica que acredito estar reservada para os maiores. É tão fácil correr mal que conseguir fazê-lo é sinal de virtuosismo. E Rosalía é uma virtuosa, este Lux assim o comprova.