Numa sociedade ainda a refazer-se de 40 anos de ditadura, um grupo de jovens arriscou a estética e a música moderna. Era 1981 quando saiu o disco Heróis do Mar.
Em 1981, numa sociedade ainda a refazer-se de 40 anos de ditadura e ainda com a memória fresca do nacionalismo e outros “ismos”, surgem quatro betinhos prontos para arriscar e mudar o paradigma musical português. E conseguiram fazê-lo, com muito êxito, especialmente graças às boas canções que ainda hoje fazem parte do nosso imaginário coletivo. Mas tudo isto com a polémica agarrada e a ajudar à divulgação.
É que este primeiro trabalho, homónimo, dos Heróis do Mar foi muito polémico (propositadamente), e não foi o sucesso de vendas esperado, que chegou apenas com o maxi-single “Amor”, em 1982, quando a banda decidiu compôr uma canção pop dançável perfeita e afastar as polémicas criadas com este primeiro álbum.
À frente da produção tínhamos, claro, António Avelar de Pinho, grande nome daquilo que podemos chamar uma new wave portuguesa, ou pelo menos alguém que estava sintonizado com o som moderno que se fazia lá fora. Muito estilo neo românticos e a atirar sonoramente a uns Spandau Ballet de início da carreira, dos tempos do “To Cut a Long Story Short”, os meninos Rui Pregal da Cunha (voz), Paulo Pedro Gonçalves (guitarra), Pedro Ayres Magalhães (baixo), Carlos Maria Trindade (teclas) e António José de Almeida (bateria) vinham já de outros projetos, como Corpo Diplomático, mas com os Heróis do Mar vem também o descalabro.
Há que recordar que se vivia numa sociedade muito politizada e que lembrar cruzes de cristo e descobrimentos, nem dez anos volvidos da revolução que fez cair um regime fascista que esteve no poder mais de 40 anos e obviamente exaltava o passado histórico imperialista, é mais do que querer chamar a atenção. E na verdade funcionou muito bem, ao garantir cobertura mediática e com ela, os insultos e boicote das canções em muitos sítios, o que só aguçava o apetite por estes rapazes provocadores sem medo de inovar. Reza a lenda que um artigo do jornal musical Sete, que se intitulava “Heróis do Mar: uma banda fascista?” foi alvo de resposta da banda com um anúncio de página inteira no mesmo jornal com uma frase de Fidel Castro. “A história nos absolverá”. E foi o que aconteceu.
Porque apesar da iconografia arrojada na época, a música era acima de tudo pop e vanguardista. E era fruto de uma franja da sociedade, jovem, que começara a encontrar e fundar os seus próprios espaços em Lisboa, físicos e intelectuais, criando uma modernidade escondida do público em geral, e que circulava num espaço restrito, a passar cassetes de música nova de forma quase clandestina, a criar e a inovar, no meio de uma sociedade de brandos costumes que se parecia ainda muito com a de outros tempos no seu conservadorismo mental.
O disco homónimo dos Heróis do Mar, passada à frente a polémica e a capa provocadora com uma cruz de cristo, é um dos primeiros discos de new wave português a sério (lançado em novembro de 1981), editado no mesmo ano que Se Cá Nevasse… dos Salada de Frutas (lançado em outubro) e do primeiro álbum dos Taxi (lançado em maio e com alguns toques new wave). Também foi nesse ano, em março, que Carlos Paião apresentou o seu “Playback” no Festival da Canção.
O primeiro disco com canções new wave em português é Música Moderna, do projeto anterior de Ayres Magalhães, os Corpo Diplomático, editado em 1979 e com a canção “Férias”, mas os teclados ainda aparecem a medo no resto do disco e a estética que impera é mais punk.
Pedro Ayres Magalhães explicou há anos que os Heróis do Mar surgem de uma ideia de criar um projeto com raízes na nossa cultura e um som contemporâneo europeu. Essa ideia mostra logo as garras em “Brava Dança dos Heróis”, com o grupo a laudar os heróis históricos sem nomear ninguém em concreto por entre coros com ligeiro delay, a guitarra só no lado esquerdo e o baixo a saltar de graves para agudos. “Amantes Furiosos” pega numa ideia clássica de amor que podia ter sido escrito entre 1400 e 1973, com referências a raça e fidelidade como se fossem nobres marinheiros errantes. Mas ao mesmo tempo é uma ótima canção para nos deixarmos levar para a dança, com ares de “Promised You a Miracle” de Simple Minds. Porque as boas referências da altura estão lá todas, no sítio certo e com muito bom gosto.
O disco prossegue com a instrumental “Magia Papoila”, onde destaco o teclado que cai a grave e as guitarras em staccato. “Salmo”, demorada no arranque, tem uma divertida parte tribal que lembra uma canção posterior de Mler Ife Dada com Rui Reininho e compara o amor a uma religião. Tem também uma frase musical em que se ouve uma interpolação de “La Bamba”. Podemos tirar daqui mais ilações aos descobrimentos e evangelização, que as há e são óbvios. Os tempos de acalmia nas letras de Heróis do Mar ainda estavam por vir. Neste disco é mais para chocar, mas sempre para um pezinho de dança.
E a bateria implacável da canção anterior nem respira e já estamos em “Bailai”, música que vai buscar algo a temas como “Dancing With Tears In My Eyes” dos Ultravox, mas assenta em notas menores, algo mais Human League. O álbum Heróis do Mar, de apenas oito canções ainda esconde uma canção fortíssima, “Saudade”, mas antes ainda soam duas outras canções, a começar por “Olhar No Oriente”. Mais uma vez a evocar os descobrimentos, cantada do ponto de vista de quem fica a ver as naus partir. E “Mar Alto” bem pode ser a continuação dessa história, sobre uma das frequentes tempestades e com notas ondulantes de guitarra e ainda mais ondulante mistura sonora passada por um sintetizador e a brincar às panorâmicas, da direita para a esquerda.
E chega “Saudade”, palavra perigosa nos tempos em que foi lançado Heróis do Mar (pela carga que a palavra tem em relação com o Estado Novo) mas uma das duas canções mais fortes do álbum, a par de “Bravas Danças dos Heróis”. Foram aliás lado A e lado B do primeiro single. Aqui já temos tudo o que faria o sucesso dos Heróis do Mar. O baixo sincopado, a tarola meio militar que vamos ter nos hits futuros, e o tema de amor. É canção de dar ao pé. Ainda estaria por vir “Amor”, que mete o país a dançar e faz um país levar a sério uma banda como os Heróis do Mar. Eles queriam fazer música para dançar e ser um bocadinho polémicos e conseguiram as duas e mais. Conseguiram ser inspiração para bandas portuguesas até bem dentro do século XXI, como os Golpes, obviamente, mas também para muitos outros grupos que acima de tudo querem fazer dançar.
Esta é a influência deste disco que mudou tudo. Mostrou a uma geração que havia espaço para ser atual, que Portugal não tinha que estar sonoramente preso aos cantautores e à música de intervenção, e podia abraçar a modernidade e estar ao nível do que se produzia, e ouvia, lá fora, nesse mítico lugar de onde vinham os discos importados.