Problemas técnicos e um par de bons concertos marcaram o dia do meio do Primavera Sound. Kurt e Lana foram rei e rainha da noite de ontem.
Se escapámos à chuva no primeiro dia, ao segundo já não tivemos a mínima hipótese. Trânsito terrível, atrasos maiores do que o esperado para chegarmos ao recinto. Parece sina, isto de nos molharmos até ao osso no Primavera. Os deuses devem ser surdos, só pode. E não gostam de diversão, como todos sabemos. Enfim, mais um dia molhado pela frente. Chuva forte, trovoada, granizo, parecia a descrição (por imagens e sons) de uma página literária romântica, bem à maneira do séc. XIX.
André Henriques, o conhecido membro dos Linda Martini (“shaken, not stirred”, para mantermos a veia literária acima começada, lembrando Ian Fleming) atuou em nome próprio e o que mostrou, genericamente, está algo distante do som da banda que o fez conhecido. Assim faz sentido. Fazer diferente, mesmo que nada de novo. Baladas temperadas com algum sentimento nas letras, bem compostas, bonitas e por vezes rasgos de guitarras. Entretanto, a chuva persistia e talvez por isso surgiram problemas técnicos graves no Palco Vodafone, ao ponto de haver cancelamentos de concertos, prometendo-se notícias frescas para mais tarde. Enfim, um mal nunca vem só. Salvou-nos Samuel Úria, sempre atento ao que se passa à sua volta, entrando ironicamente em palco com capa da chuva transparente e camisa de alças. Teve piada. Pós-moderno, como sabemos, cantou “Tema Triste” por ser uma pessoa feliz que gosta de canções tristes. Pode gostar-se ou não de Samuel Úria, mas não há outro com o seu jeito de fazer canções, estilo e presença em palco. Para nós, todas as suas cargas de ombro são legais e por isso, venha o que vier, terá de nós (e em uma das altamontianas em particular) a devida atenção, mesmo que seja à chuva, o que acabou por não acontecer. Uma pinga ou outra em ritmo de fim de choro. Fomos, de seguida, espreitar Crumb e foi uma agradável surpresa. Bons momentos instrumentais, temas que parece que voam, sinuosos e alados, mesmo simpático para final de tarde.
Seguiu-se This Is The Kit. Uma guitarra, um baixo, um banjo e bateria. Muito british o folk-rock que ouvimos. Fez-nos lembrar, a espaços, a desaparecida Michelle Shocked. (Estará mesmo eclipsada? É que há já muito tempo que nada sabemos dela, de facto.) A mentora da banda, Kate Stables, mostrou-se agradecida por ser este o seu primeiro festival do ano, e ainda mais satisfeita por parecer que estava na sua terra natal, Inglaterra, referindo-se ao mau tempo de ontem. Salvaguardando-se as devidas distâncias, até porque é bom não abusar nas comparações, por vezes a voz de Stables tem semelhanças com a de Joni Mitchell dos idos setentas. Bonito, todo o set. Foi mais ou menos nesta altura que surgiu a notícia que não haveria mais Palco Vodafone para ninguém. Os tais “problemas técnicos” são como as viroses para certos médicos. Dizem que as temos, mas ficamos sem saber bem o que são. Nada a fazer. Siga.
Longa pausa à espera de Lambchop. Mesmo juntos ao Palco Super Bock, um bonito piano à espera da voz única de Kurt Wagner. Nós também. Todo o concerto foi uma autêntica missa de tranquilidade e bom gosto. Uma mesa com dois copos, uma cadeira e o homem por detrás dos Lambchop vagando pelo palco, aproximando-se do microfone para cantar versos cheios de América profunda. Nada se ouvia no meio de todo aquele silêncio preenchido pela mais bela música de Kurt e pelo seu grave tom de voz. Que momento! E quando se juntava a voz de Kurt Wagner com os suaves falsetes do pianista Andrew Broder, então tudo ganhava um jeito ainda mais celestial. Passou-nos, nessa altura, esta ideia pela cabeça: já não há silêncios de ouro. Essa categoria foi claramente ultrapassada pelos silêncios da música dos Lambchop. Esses sim, são silêncios bons de ouvir. Muita gente de olhos fechados. Muita mesmo. Foi o que vimos nós, antes de fecharmos também os nossos. Perfeito! Saímos do concerto com a esperança de que aquela hora e meia tão bem passada nunca mais nos saísse da cabeça. E a levitar, pois claro. Foi assim que subimos toda a encosta verde que se estendia por trás de nós. E sempre sem tocarmos com os pés no chão…
Depois dos Lambchop, qualquer outro som acima de um suspiro parecia despropositado e incómodo. Levámos algum tempo até aceitarmos os ruídos do mundo. Nem fomos sequer ouvir (quase ao mesmo tempo de Lambchop) as The Last Dinner Party. Muito menos os Tropical Fuck Storm. Só de pensar em storm, até nos arrepiávamos. Por isso resolvemos aguardar serenamente por Lana Del Rey.
O que dizer do concerto de Lana Del Rey? Muita coisa que já se sabe e que sempre foram ditas, claro. Uma mega produção, sem poupança de meios técnicos e humanos, ou não fosse a vedeta do dia nascida em terras do Tio Sam. Também ela é uma variante do american dream. Talvez nem nos seus melhores sonhos imaginasse o que viria a ser o seu futuro, que parece mais um sonho do que uma realidade. É o que transparece de todo o decor, dos jogos de luzes, dançarinos, músicos e o que mais se imagina. Escadarias, varões, varandas por onde Lana se debruça qual Julieta mostrando-se perante tantos Romeus. Nem conseguimos contar quantas pessoas estiveram em palco ao mesmo tempo. A cada trinta segundos, a gritaria entusiasmada do público provocava contágios na multidão que a ouvia em êxtase. “It’s so fucking amazing to be here”, e o entusiasmo em alvoroço ainda crescia mais. Foi assim até ao fim. Canções simples, uma voz sedutora, ingredientes perfeitos para que os fãs acreditem em Lana e a sigam até ao fim do mundo e mais além. E ela, na sua pose de candidata vencedora do concurso de Miss América das canções sofridas, vai seguindo triunfante. Não vinha com a respetiva coroa, mas todos a imaginavam com ela. Diga-se o que se disser, há trabalho e mérito no que faz e apresenta. Haverá quem não goste, evidentemente. Mas mesmo quem possa torcer o nariz ao que Lana é e representa, dará (pelo menos parte) da sua mão à palmatória. O espetáculo é gigantesco, quase megalómano, e as canções que toda a gente parece conhecer, adornam todos os momentos do show, naturalmente. Entre tantas outras, ouviram-se “Summertime Sadness”, “Ride”, “Born to Die”, “Norman Fucking Rockwell”, e a derradeira “Young and Beautiful”.
A noite terminou pouco molhada. Apesar dos pesares, acabou por ser um dia positivo. O que se deseja para o terceiro e derradeiro dia do Primavera Sound é que tudo corra pelo melhor, até porque os Pulp estão quase aí a chegar.
Fotografias: Hugo Lima – Primavera Sound Porto