Em Garden reúnem-se três discursos distintos, mas que se democratizam na vontade comum de superação das instâncias clássicas musicais.
Garden reune três prolíficos e versáteis músicos da cena experimental portuguesa. O reconhecimento musical que lhes cabe é como que um tríptico que se adensa e conjuga ainda mais nas idiossincrasias de cada músico.
Lopes invoca subversivamente a desolação através de – ainda que espontâneos – largos e ressonantes tons que aludem à aspereza da condição humana. O discurso dissonante que lhe é próprio instiga ao desalojamento emocional e a uma quase procura pela dissociação. Talvez seja mais correcto referimo-la como forçosa dissociação uma vez que a apatia individual revela-se inatingível. A agressividade cirúrgica, a incisão médica, a proficiência tonal são marcas discursivas de Luís Lopes. Presenciámo-lo num discurso mais íntimo e pessoal em Love Song lançado pela Shhpuma em 2016 e dedicado à sua companheira, Magda.
José Bruno Parrinha estabelece-se, em par de Lopes, numa prática e abordagem musicais extremamente versáteis e pouco ortodoxas. Subtraindo-se à convenção e aos dogmas institucionais recria através de um equilíbrio inadequadamente perfeito entre o saxofone e o clarinete paisagens desoladoras e sobre-humanas. O tom quase minimalista mas imensamente texturizado assalta o ouvinte de rompante, inquietando-o pela dicotomia que se lhe apresenta. Por um lado, a paisagem sugere-se respirada, esparsa, morosa – suporei até -, mas, por outro, intensifica-se no discurso totalizado dos restantes músicos que a complexificam e diversificam. O silêncio e outras categorias extra-musicais coexistem em Garden como nunca antes em registo discográfico de free jazz, música improvisada e experimental portuguesa se verificou.
Ricardo Jacinto introduz um outro instrumento de cordas – em par do incrível controlo de uma vasta parafernália electrónica – propenso a expansivas ressonâncias ad infinitum: o violoncelo. Largos e descomprometidos são os toques de Jacinto. A sua linguagem musical integra um vasto complexo aberto psicossomático do qual extravasa a perfeita desenvoltura e controlo daquela que deveria ser a abordagem mais natural à livre emancipação musical do sentido sónico individual. O controlo de feedback e o atento acerto das várias texturas e camadas que, por vezes – ainda que intencionalmente – se repetem revela-se quase que incogitável. As frequências aglutinantes de Jacinto entrepõem-se às de Lopes que desvela o frenesim elétrico que lhe cabe. Parece incrível poder supor-se que o discurso musical em Garden não se totaliza nos músicos que o materializam; extravasa para lá do que o cinge, abrindo-se a outras perspectivas transfronteiriças e interdisciplinares. A latência sónica – que é algo que lhes é próprio – confunde-se nas idiossincrasias individuais.
A peça com que o álbum se inicia é bastante intrigante: os laivos esparsos e contidos de Parrinha ajeitam-se a descomprometidos e descompassados – abençoada seja a arritmia – ritmos de fundo, frequências que se repetem numa lógica ad terrorem. Instiga à hesitação, ao tumulto e desatino interiores. Lopes contem-se, resfria as pulsões nevróticas. Antepara-se, resguarda-se, tem-se em si quase quieto e calado, controla as tensões que o cingem e assaltam.
Garden é a materialização da discursividade de Foucault como prática significante de um imaginário distante e ainda pouco considerado.