A rainha está morta. Mas os Smiths, os Smiths continuam vivos. E agora parecem ter passado por uma estranha metamorfose que os transformou numa mixórdia de barbas frondosas, sintetizadores, e luzinhas a piscar. Fala-se da passagem de Walter Benjamin & Friends pelo Lux Frágil no passado dia 27 de Dezembro. A convite de Pedro Ramos, o lendário disco da banda também ela lendária de Morrissey, The Queen Is Dead, foi apresentado cordialmente aos dias de hoje, e a comandar a missão encontrou-se Luís Nunes (dito Walter Benjamin), e os amigos João Correia (bateria), Nuno Lucas (baixo), Noiserv e Sequin.
Walter Benjamin e companhia seguiram de perto a ordem de faixas originais do disco; pouco mais fizeram que indicasse qualquer impedimento a colocarem em cada uma delas a sua marca registrada e única. O concerto viu-se abrir com uma “The Queen Is Dead”, que viu a imediatamente identificável guitarra de Marr substituída por um turbilhão tão furioso quanto tresloucado, no melhor sentido da palavra, de bateria, baixo e teclas que conseguiu despir a música original de grande parte dos seus elementos que tão bem conhecemos, deixando uma resma de sabor daquilo que nos faz adorá-la em primeiro lugar. Algo que iriam fazer com quase todos os restantes temas interpretados.
Após uma agradável rendição da “Frankly Mr. Shankly”, chegou a vez do talvez mais célebre hino dos transtornados – entre tantos outros hinos! – da banda de Manchester, “I Know It’s Over”. De facto o catálogo smithiano vê-se a transbordar da temática, mas há algo que sobrepõe a “I Know It’s Over” sobre todos os outros temas em termos de valor emocional. “I Know It’s Over” é, ao contrário de muitas músicas da banda sobre uma temática trágica, delicado, íntimo, assemelhando-se quase a um sussurro envergonhado, algo que apenas uma mão cheia de outras músicas da banda faz. Numa tentativa de interpretação própria do tema, Walter Benjamin & Friends, acompanhados por Sequin a tomar o lugar de Luís Nunes na voz, lançaram-se numa versão ska digna de algo saído de um disco dos Specials. Não é que não tenha resultado, apenas não resultou com aquele tema em particular; a voz doce de Sequin e o ritmo baloiçante proporcionado pela banda complementou-se perfeitamente, mas algo azedou no que tocou a transformar um sussurro no que parecia conversa desfiada. No entanto, seria a primeira e última desilusão na interpretação de temas no concerto.
Luís Nunes tomou novamente o microfone para si para levar “Never Had No One Ever” por caminhos sombrios, arrepiantes e simplesmente maravilhosos, vociferando quase furiosamente, como um verdadeiro veterano musical, os lamentos escritos por Morrissey há quase trinta anos – I had a really bad dream / It lasted 20 years, 7 months, and 27 weeks… -. O tema original transformou-se numa balada épica, sentida e verdadeiramente perturbada, com proporções de um hino semelhante a clássicos deste género de universos completamente diferentes como “The House Of The Rising Sun”, a versão de Dylan.
Após um sempre bem-disposto “Cemetry Gates”, a plateia respondeu, se bem que algo tímida, a um pedido de “abafar” a banda, com outra interpretação arrebatadora da enorme “Bigmouth Strikes Again”.
O momento alto da noite deu-se com a chegada de Noiserv ao microfone, personagem essa que só poderia estar do lado do palco e não da plateia numa noite como aquela. Controlado, seguro e sempre sereno, Noiserv deu voz a uma inesperada e encantadora interpretação lenta de “The Boy With The Thorn In His Side” mostrando mais uma vez que sabe exatamente o que está a fazer. Durante alguns minutos, foi possível a todas as almas na plateia perderem-se na delicadeza bela da melodia original, muitas vezes esquecida.
Após um pouco de “Vicar In A Tutu”, chegou a vez de “There Is A Light That Never Goes Out”. O grande momento havia chegado; e desta vez, parecia haver mais segurança na voz de Luís Nunes ao pedir à plateia para verdadeiramente “abafar”. Não era sequer um pedido; era uma ordem. E claro que a plateia se viu forçada a obedecer; tinha acabado Luís Nunes de entoar numa voz de quem anda muito longe aquela frase inicial que arranca qualquer um da sobriedade habitual – “Take me out, tonight…” – para a pequena sala se ver estremecer com o número de vozes que tomava microfones imaginários nas mãos para brandir aquela mensagem de amor tão insana como dolorosamente honesta. Todos os que acreditavam na permanência da luz em estado aceso fizeram a banda saber.
Chegou por fim a vez da última faixa do álbum, “Some Girls Are Bigger Than Others”; após terem feito de coro entusiasmado na música anterior, a plateia não hesitou em acompanhar mais uma vez Walter Benjamin & Friends no tema que trata o tamanho de algumas raparigas e algumas mães e de dar um pequeno passo de dança ao som daquele riff inesquecível, ao qual as teclas proporcionaram um som fresco e original.
Apesar de exaustos de toda a dança e cantoria, a plateia fez soar alguns pedidos de retorno, aos quais a banda respondeu regressando ao palco para mais três temas. “Espero não estragar esta música”, eram as palavras proferidas, num misto de embaraço e de modéstia respeitosa, por Luís Nunes, ao pegar na guitarra e tocar um outro tema dos Smiths, “Please Please Please Let Me Get What I Want”, com uma crueza que fez lembrar ao longe um Buckley a interpretar o mesmo tema. De seguida, os restantes membros da banda retomaram as suas posições, para tocarem dois temas originais: “Mary”, que tinha um sabor a Los Hermanos, e finalmente “We Might Never Fall In Love”, simples mas muito eficaz no que tocou a pôr a plateia toda a entoar a curta letra.
A rainha morreu. Os Smiths? Os Smiths estão muito vivos, e, aliás, vivem dentro de cada um de nós, em toda a sua demência trágica e irónica que cada um consegue ler à sua maneira. The Queen Is Dead, apesar do seu título, é um álbum com temas ainda muito existentes que vão-se conseguindo entranhar nas nossas gargantas, corações e vidas, e a interpretação inspirada de Walter Benjamin & Friends no passado dia 27 de Dezembro não deixa sombra de dúvida que há uma luz que, de facto, nunca se apaga. Não procuremos o interruptor.
(Fotos: Francisco Pereira)