A verdade é bela e nela Vaiapraia espelha o seu carisma. De tochas na mão e palavras no peito, queima os preconceitos e os pudores, as barreiras linguísticas e as musicais, cantando sobre um presente comum e lutando por um futuro melhor.
De uma geração ensinada a comer e calar soltaram-se vozes decididas a falar. Que falam sem tropeços e sem medos, como a verdade deve ser. Contudo, por vezes, há vozes que falam mais alto e que chegam mais perto. Talvez Vaiapraia já tivesse tido o seu grito do Ipiranga, talvez até nem tenha gritado por cima de ninguém, talvez ninguém lhe tenha gritado de volta. Mas gritámos todos com ele, como que numa guerrilha conjunta pela emancipação, onde o dom da palavra é o sonho da compreensão.
100% Carisma é, ao mesmo tempo, a personificação da descoberta pessoal e a prova de que o ser humano nunca está sozinho, e de que mesmo numa demanda individual, o todo é maior do que as partes. Dos devaneios e pensamentos que foi recolhendo e explorando desde o lançamento do seu último 1755, editado em 2016, foi metamorfoseando a sua observação de si próprio e dos outros em canções que contêm em si o mundo que é seu, e todos os outros mundos que o compõem ou com quem ele se cruza. E agora em nome próprio e sem as suas Rainhas do Baile, recusou-se a desgrudar a amizade da música, contando com inúmeras participações para além da banda, entre as quais Adriano Cintra, criador e ex-músico das Cansei de Ser Sexy (arranjos, produção e mistura), Luís Severo (arranjos, gravação e coros), Lora Logic, britânica da banda de punk dos anos 70 X-Ray Spex (saxofone na faixa “2003”), entre muitos outros. Só em coros conta com mais de uma dezena. E se esta é a sua obra, todos estes elementos são peças da magnificência do puzzle.
O álbum começa a abrir com “Tenho Fome”: um recitar, um loop de palavras e um delírio lírico onde os ritmos devassos se reproduzem com o punk rouco e onde Rodrigo Soromenho dá o palco a qualquer um para reclamar o seu poder. Seguindo o fio condutor, segue-lhe “Frigorífico Vazio”, “tão sozinho e com frio”, num sinfónico jogo de palavras carregado de emoções e estados de espírito. Nesta sua singela forma de expressão, abunda-lhe a teatralidade. E dentro do álbum ou mesmo dentro de cada música encontramos uma multiplicidade de personas, variações na voz e interpretações, da mesma forma que contamos uma enorme variedade de temáticas, sonoridades, tempos, arranjos e ritmos diferentes.
Se é difícil não ficar com grande parte das canções no ouvido ou deixar um teclado ou refrão comandar a motricidade do corpo e a repetição da mente, também não será pois fácil escolher quais esmiuçar. O single de apresentação “Fogo Fera” foi a bala certeira no botão de querer ouvir em loop. Bateria insaciável e cativante, garra e tumulto na voz e sintetizadores felizes: o combo que se quer. E dentro da mesma gaveta de empoderamento musical com energia inesgotável temos “Disca-me Afectos”, o malhão que fala de amor, sufoco laboral e incerteza a um ritmo quase tão lancinante como a própria vida. E se durante todo o álbum saltitamos comodamente entre baladas e punkalhadas, a faixa de encerramento é esse equilíbrio celebrado numa música, onde a palavra é a sua arma mortífera: “Eu sou o que eu sonho, eu sou o que eu sonhei, eu faço o que eu posso, o que eu não posso é o que eu serei”. Não serão todos os que se identificarão: com os pensamentos, com os devaneios, com os medos ou as revoltas. Mas há espaço dentro de cada canção para todos os marginais e incompreendidos, para os assumidos e os que ainda não sabem, para os que querem lutar, mas ainda não descobriram como.
Em 100% Carisma, Vaiapraia faz jus ao título do álbum… e faz a diferença sendo ele próprio. Com uma voz convicta e desassossegada, empodera os desacreditados e regenera os que se acham estragados. E deixa-nos crer que neste pequeno país de sonhos mutilados, ainda há quem acredite em nós.