Um conjunto de vinhetas dos nossos conturbados tempos, num objecto artístico sem concessões mas ainda assim acessível.
Os Três Tristes Tigres (TTT) são um objecto curioso no panorama musical português. São mais um projecto, uma forma de estar, um movimento descontínuo, do que propriamente uma banda. Com o arranque mais poppy de Partes Sensíveis, de 1993, apanharam uma onda positiva da música nacional e deixaram a sua marca no espaço mediático, ainda que as coisas nunca tivessem parecido terem sido pensadas para tal. Afinal, quem raio se lembra de fazer uma banda apenas com uma vocalista (Ana Deus, vinda dos BAN), e uma poetisa (Regina Guimarães), que escrevia as letras mas não tocava nada nem fazia parte do alinhamento “musical” do grupo?
A segunda vida – e a mais interessante – dos TTT veio logo de seguida, quando Alexandre Soares (Ex-GNR e várias outras coisas) se juntou, trazendo consigo as suas guitarras, as suas máquinas e a sua forma peculiar de ver a música pop. Guia Espiritual, de 96, trouxe grande sucesso, tanto do público como da crítica, e Comum, dois anos depois, já era um disco menos imediato, mais electrónico, mas um verdadeiro triunfo artístico. Estes dois discos bastariam para deixar a marca dos TTT na música portuguesa.
Seguiu-se um enorme hiato discográfico até ao regresso, em 2020, com o sufocante e difícil Mínima Luz, negro, artsy e, mais uma vez, sem quaisquer compromissos com o que seria mediaticamente mais desejável. Agora, este novíssimo Arca quebra novamente o silêncio, num registo de certa forma aparentado ao de Mínima Luz mas claramente menos denso e menos impenetrável, em termos sonoros.
O que não significa que Arca seja um disco luminoso ou optimista. É lento, enigmático, com recantos e pormenores sonoros por descobrir meio escondidos. Saúda-se o cuidado com os arranjos, porque num disco tão cheio de pequenas coisas houve sabedoria da parte de Alexandre Soares em deixar espaço para a voz, sempre expressiva, de Ana Deus. Em termos temáticos, a banda tem falado de uma série de cartas de amor, mas que na verdade podem ser igualmente recados, vinhetas, panfletos. E precisamos disso.
Nesta Arca cabem alguns dos grandes temas dos nosso tempos, e de todos os tempos, na verdade. A ligação humana, o amor, o medo, a guerra. A abertura, com a mutante “Ninguém é uma ilha” é, nesse sentido, um bom ponto de resumo deste trabalho.
E em tempos de egoísmo galopante e de extremismos manipulativos, há que celebrar momentos como a arrebatadora “Exodus”, no qual Ana Deus e A garota não nos lembram que “todos nascemos migrantes”. Ou a frase certeira de “a guerra é tão antiquada, dorme na cova da História”, em “Guerra”.
É também esta uma das muitas funções da arte: interpelar, desassossegar, resistir à barbárie.
Em Arca, estamos perante um objecto artístico, com tudo o que isso acarreta de abençoadamente arrogante e subversivo. Em que música e palavras andam juntas e compõem uma só experiência, em que nada cede a um qualquer facilitismo de catálogo. Ainda bem que há gente que tem este cuidado, que insiste em ter voz própria, que tem o desplante de, na época do tik tok de bolso, sem gritar, afirmar um caminho.