Surma está de volta neste final de ano. Traz-nos um inesperado pequeno presente para iluminarmos a nossa árvore de Natal.
É no Natal que as ausências mais se notam e mais custam. Vivemos com elas com um aperto no peito, que é a forma quase física de se tornarem presentes aqueles que não estão ao nosso lado. E quando esse vazio nunca mais poderá voltar a encher a nossa vida, ainda dói mais. A dor, o sofrimento da perda, mas também a beleza transformadora da arte, tudo isto se encontra no EP de Natal de Surma, feito com o pensamento em Ryuichi Sakamoto, que em finais de março nos deixou para sempre.
São nove, os temas de if i’m not home: i’m not far away. Pequenos instantes de delicadeza, feitos de tessituras várias. Ângulos de sons que se esfumam, momentos de vibrações e silêncios que se conjugam, como se tivessem nascido de mãos dadas. Por vezes, parecem desertos onde tempo e espaço flutuam, dando-lhes a estranha dimensão de curtas eternidades, como é o caso da onírica “Yügen”, que abre maravilhosamente o EP. No entanto, o que se segue aponta noutras direções mais cruas, ásperas, experimentais, mas delicadas, mesmo assim. É o que se escuta em “Polite Sleeper” e em “Firgun”, ambas desconcertantes porque inesperadas, depois da magia mansa de “Yügen”. Tudo breve, tudo pronto a impor-se e a desaparecer segundos depois, ínfimas tatuagens sonoras que se inscrevem e se apagam na pele sonora de if i’m not home: i’m not far away. Instantes depois, chega “Colette”, bem comportada e um pouco inquietante ao mesmo tempo, que bem poderia ser uma pequena e particular pele sonora de uma qualquer personagem de Maupassant, por exemplo. Já “Impermanence” tem uma respiração muito própria, por vezes quase ofegante, vinda de um qualquer lugar sem nome ou existência conhecida e que, passo a passo, se apresenta e se instala, confortavelmente, em nós. “M.auve” é música celestial, onde a voz e os instrumentos se misturam perfeitamente entre sussurros e diálogos de fácil entendimento. É sempre simples compreender a beleza das coisas, mesmo que não saibamos verdadeiramente o que são e o que dizem. É o caso de “M.auve”, um dos mais gloriosos (gloria in excelsis!) momentos de if i’m not home: i’m not far away. “Étoile” começa com os mais conhecidos sons da mais conhecida canção de Natal, e depois… um quase silêncio que se estende por alguns instantes. Talvez esses segundos sejam a mais perfeita metáfora de todo o disco, pois ecoam ao frio da ausência e do vazio, numa época festiva em que os corações deveriam transbordar de calorosa existência. No entanto, nos instantes finais, há uma espécie de felicidade que brilha, ainda que comedidamente, para depois terminar de forma súbita. “Inside a Metaphorical World” é um pequeno interlúdio experimental, até que surge “Héloise”, a única faixa-canção de todo o disco, muito acid-folk, muito ao estilo das manas Bianca e Sierra Casady. Que bonita, toda esta leveza, todo este enleio fora de qualquer tempo ou dimensão! E assim se coloca um ponto derradeiro a if i’m not home: i’m not far away. Que elegante e bonita forma de se chegar ao fim!
Importa pouco saber por onde andará Ryuichi Sakamoto nestes breves minutos de if i’m not home: i’m not far away. Nos pianos iniciais de “Yügen” e de “Colette”? É bem possível. No entanto, talvez o espectro do bom japonês exista muito para além dessas quase evidências mencionadas, e se espraie por todos os outros lugares do disco, numa espécie de omnipresença que se materializa em sons, signos e pulsões. Nunca o saberemos, e assim é que deve ser. O que se escuta em if i’m not home: i’m not far away, nem sempre é desde nosso mundo. É do universo de Surma, o que é bem melhor.