30 anos é muito tempo. E se falarmos de uma banda, e de um disco, que influenciou boa parte da música nova que fomos ouvindo nas últimas décadas, o fosso temporal parece ainda maior. Foi na primeira metade de 1984 que saiu The Smiths, o primeiro disco da banda com o mesmo nome.
Menos de dois anos antes, Johnny Marr batia à porta da casa onde um frustrado Stephen Morrissey vivia com os pais. Apesar de mais novo, Marr já tinha alguma experiência enquanto músico, tendo emprestado os seus talentos na guitarra a várias bandas menores de Manchester. Queria agora fazer uma banda, e tinha ouvido dizer que Morrissey – que conhecia vagamente do público de concertos pela cidade – cantava e escrevia letras. Este estava numa das fases da qual parecia nunca sair – até hoje – de insatisfação, de inércia, de depressão. Depois de uma primeira e demasiado curta experiência enquanto cantor, o guitarrista dessa banda desmantela-a para se juntar aos Theatre of Hate, a caminho do Top of the Pops. Morrissey ficou destroçado porque os ensaios e os poucos concertos em que havia participado haviam constituído a primeira ocasião da sua vida em que ele não se havia sentido fora do lugar. E, afinal, a vida era tão triste e traiçoeira como ele sempre havia pensado,e tudo acabou demasiado depressa. O tal guitarrista, Billy Duffy, consola Morrissey e diz-lhe para procurar um miúdo chamado Johhny Marr, “que é muito melhor guitarrista que eu”. Mas o cantor não era pessoa de andar a bater à porta dos outros. Felizmente, Duffy havia tido a mesma conversa com Marr, e este estava mais decidido. Bateu mesmo à porta de Morrissey, e nascia aí a melhor parceria de composição do Reino Unido após uns tais de Lennon/McCartney.
Desse encontro quase mitológico, pouca música se fez, mas de muita música se falou. Foi aliás, inicialmente, essa a cola entre os dois rapazes: gostarem das mesmas coisas, tanto na música como na televisão e nos filmes e, mais importante ainda, defenderem-no com a mesma convicção com que defenderiam a sua própria vida. Ouvindo Marr tocar, Morrissey não podia acreditar que ele não tivesse ainda deixado uma marca na cena musical de Manchester. “Mais estranho ainda, damo-nos muito bem. É uma questão de encontrarmos em nós a posse de uma faceta vital que o outro não tem, mas necessita”. Daí aos ensaios a dois, às primeiras composições tímidas, ao nome (sugerido por Morrissey e imediatamente aceite por Marr), foi um percurso incrivelmente rápido. Musicalmente, a alquimia completou-se com Mike Joyce e Andy Rourke, na bateria e no baixo, respectivamente, ambos trazidos por Marr. Morrissey, que havia passado os anos anteriores a idolatrar os New York Dolls e a ver concertos pela cidade e até Londres, não conhecia mais ninguém. Sempre o solitário, sempre, até os Smiths lhe proporcionarem o palco de que necessitava.
Em termos de faixas, está neste disco de estreia boa parte das coordenadas que fariam dos Smiths uma das bandas mais influentes de sempre da música pop com cabeça. “Reel around the fountain”, que abre o disco, é um óptimo cartão de visita. Ritmo relativamente lento, sim; mas a indolência do ritmo não significava moleza, e sim tristeza, desejo à distância, dor escondida num quarto de Manchester: “fifteen minutes with you, oh, I wouldn’t say no”, mas sem esperança. Musicalmente, uma cama impecável estendida por Marr (a quem foi creditada toda a música, e as palavras a Morrissey). A guitarra-chave dos Smiths, um discreto piano, uma estrutura clássica pop de refinadíssimo bom gosto. Segue-se “You’ve got everything now”, mais rápida, mostrando credenciais mais dançáveis, mas mantendo o desespero nas letras. “No i’ve never had a job, because i, never wanted one”, no disco de estreia de qualquer banda é significativo, ainda mais nesta: Morrissey não tinha plano B, nunca o havia tido.
“Miserable Lie” é irrelevante, não faz falta nem deixou história. “Pretty Girls Make Graves”, não sendo uma má canção, é melhor enquanto título de canção do que por si mesma (deu, aliás, nome a uma banda britânica). “The Hand that rocks the cradle”, que fecha o lado A do vinil, sobe ligeiramente a parada, com o dedilhado de Marr a dar mais um clássico do seu som tradicional. No entanto, musicalmente é um tema repetitivo e monótono, vivendo, mais uma vez, da entrega indolente do vocalista e das suas letras. Neste caso, surgiram alegações de referências a pedofilia. Algo imediatamente negado pela banda, mas que ajudou à controvérsia.
O lado B abre com dois portentos, que ajudaram a cimentar a estreia da banda. “Still Ill”, talvez a peça do disco que mais se equilibra entre a excelência da música e a excelência da letra “there are brighter sides to life/And I should know, because I’ve seen them/But not very often…”, é Smiths vintage. Musicalmente é excelente, e facilmente ouvimos no dedilhar ‘jangly’ de Marr boa parte da discografia dos Stone Roses, por exemplo, que vieram bem mais tarde. De seguida, “Hand in Glove”, que já havia sido editada em single quase um ano antes, e que havia, em maquete, convencido a Rough Trade a assinar com a banda. Até hoje, é um dos temas mais queridos dos fãs da banda. Mais do que a música, foi a própria capa do single a chamar a atenção. A imagem de um homem, nu, de costas, era coisa que não se podia fazer em 1983. Havia os Wham, sim; os Duran Duran usavam maquilhagem com fartura; Boy George era uma estrela planetária; mas o imaginário gay só era aceitável se fosse ‘camp’, se desse piadas e excentricidade britânica; o corpo masculino nu, isso seria sempre escandaloso. Tal como Morrissey, que idealizou todas as capas dos Smiths, desejava.
“What Difference Does It Make” é outro excelente exemplo da composição de Johnny Marr, com a sua guitarra parecendo atravessada de água, com uma leveza não ouvida desde as seis cordas dos Byrds. “Now you know the truth about me, you won’t see me anymore, but I’m still fond of you”, canta Morrissey, em mais um tema clássico da banda, o amor adolescente e, evidentemente, problemático. “I don’t owe you anything” é mais uma música lenta, um lamento perene mas muito bonito. O disco encerra com “Suffer Little Children”, que menciona um caso que marcou profundamente a sociedade britânica: os assassínios de Moors, com um casal a matar pelo menos cinco crianças na zona de Manchester entre 1963 e 1965. Numa sociedade que vivia o pós-guerra com a ilusão de um mundo sempre melhor, esse acontecimento chocou o país e sintetizou, para muita gente, 0 mal em estado puro e gratuito. Falar disto numa canção pop, enfim…
Há ainda, em várias reedições, o clássico absoluto “This Charming Man”, que ajudaria a levar The Smiths a um patamar ainda mais elevado, mas que não fazia parte do alinhamento inicial do disco.
Temos assassinato de crianças; temos homosexualidade (a própria capa do disco traz Joe Dalessandro, actor fetiche de Warhol, em tronco nu); temos poesia; temos pedofilia; temos tristeza e desespero para dar e vender; temos um vocalista com uma voz de ouro mas uma mente e uma sensibilidade peculiares; e temos um génio, Johnny Marr, a acreditar finalmente nas suas capacidades. Disto é feito The Smiths, o disco. Ficou claro, desde essa hora, que estávamos perante algo diferente. Um veículo no qual letras do mais poético e inteligente feito até aí evocavam fantasmas, dor e inadequação, mas por cima de música doce e perfeita. Ou seja, a depressão, o medo e a frustração em formato chupa-chupa, o que era um óbvio íman para os adolescentes do Reino Unido. E do resto do mundo, claro.
Este disco teve, na verdade, duas versões. Uma primeira, produzida pelo guitarrista dos Teardrop Explodes, Troy Tate. Que, ouvida pelo presidente da Rough Trade, foi de imediato rejeitada. Este agarrou nos masters e entregou-os a John Porter, um produtor da sua confiança, para que remisturasse o material. O veredicto deste foi terrível: as gravações estavam fora de tom e fora de tempo. Mais valia gravar tudo de novo, o que veio a acontecer, e é essa versão que hoje conhecemos. Como acontece sempre nestas coisas, essa primeira versão não editada ganhou uma fama quase mitológica, com Marr e Morrissey, em diferentes alturas, a defenderem que era melhor do que a que acabou por sair. Aliás, o vocalista,por várias vezes, afirmou que o produtor John Porter retirou peso à música dos Smiths nesse disco, deixando-a sem espessura e sem a gravidade e a urgência que os temas tinham ao vivo. Tanto assim foi que Porter não voltou a produzir os Smiths. Mais, insatisfeita com esse primeiro disco – cuja reputação foi sendo paulatinamente recuperada – a banda insistiu na edição apressada de um novo disco que juntaria novos singles, lados B e temas tocados ao vivo no ano anterior para programas da BBC, como o do histórico John Peel. Este disco é Hatful of Hollow, e nele podemos ouvir algumas (poucas) músicas que já estavam no disco de estreia, mas em versão ‘live’. E, de facto, nota-se uma vitalidade renovada (por exemplo, o baixo de Rourke mostra uma inventividade que não se adivinhava nas versões de estúdio conduzidas por Porter).
Foi aqui que nasceu a história e, embora os maiores aplausos da crítica estejam guardados para os dois últimos discos da banda (The Queen is Dead e Strangeways Here We Come), este álbum foi a pedrada no charco de algo diferente que havia chegado, e que exigia ser ouvido. As suas influências estão um pouco por toda a pop feita desde então: os já citados Stone Roses, Shins, LA,s, Gene, são os casos mais óbvios e directos. No entanto, a força vai muito mais longe. Como dizia recentemente o NME, praticamente toda a gente que ouviu esse disco em 1984 estava a descobrir a sua nova banda favorita.
Com este disco – que como todos os restantes discos de originais dos Smiths – entrou para número 2 do top britânico sem nunca chegar a número 1, adolescentes estranhos de óculos e com borbulhas encontraram a sua voz. Aqueles para quem gostar de Keats era motivo de vergonha, orgulhavam-se agora disso, porque uma rock star falava disso nesses termos; Morrissey era o messias para quem sempre se habituara a ver as estrelas – os Bowies e os Bolans – ao longe, inacessíveis. Um cantor que tinha como referência Oscar Wilde e não Elvis,apesar da poupa. Um ícone que citava John Keats e odiava publicamente a família real e o conservadorismo de Margaret Thatcher, mas que não o fazia num contexto punk, mas num meio do mais pop que podia existir.
Quem diria que os óculos de massa se tornariam um statement?