Foi pelo poder da palavra e da canção que, na terça-feira passada, a Amnistia Internacional (AI) teve sucesso em mais uma das suas iniciativas em defesa dos Direitos Humanos.
O Live Freedom II tinha também como objectivo pôr pessoas a participar na Maratona de Cartas, uma iniciativa da organização que se destina a fazer um envio massivo de cartas em auxílio de pessoas cujos direitos básicos não são respeitados.
Eventos deste tipo não são novidade para a Amnistia Internacional. Nas décadas de 1970 e 1980 a AI organizou vários espectáculos solidários pelo mundo fora com a participação de humoristas como os Monty Python e músicos como Sting, Peter Gabriel, Paul McCartney, Phil Collins, Sting ou Eric Clapton, entre outros.
Em Lisboa, este ano, a cantiga foi outra. Pouco depois das 21h30, no Teatro Tivoli, entravam em palco os dois conhecidos humoristas da Rádio Comercial, Nuno Markl e Vasco Palmeirim, o mestre e o aprendiz. O segundo, repetente no Live Freedom, começou por falar da primeira edição do evento e interagiu com o público, no começo do que seria uma noite de conversa e canto muito calorosa, que não deixou ninguém indiferente.
Depois de Teresa Pina, directora executiva da Amnistia Internacional Portugal, revelar que, no ano passado, foram enviadas, de Portugal, cerca de 42 mil cartas, foi exibido o vídeo do primeiro dos quatro casos de prisioneiros de consciência: o jornalista etíope Eskinder Nega, preso por criticar o Governo do seu país, e que foi “apadrinhado” por Sérgio Godinho.
Acompanhado de outros quatro músicos, o autor de “Espalhem a Notícia”, começou o concerto com uma “Bomba Relógio”, sinal do que seria a sua prestação em palco. Com um alinhamento que parecia esculpido de propósito para a ocasião, Sérgio Godinho encheu a actuação de “rastilhos no peito” e apelos como “desbloqueemos”, quando anunciava “Acesso Bloqueado”.
Foi mesmo com “Espalhem A Notícia” que o cantautor encheu por completo o espaço sonoro e etéreo do Tivoli, como se até aí faltasse algum elemento nas canções e assim se tivesse resolvido o problema. Com uma versão arrepiante de “Os Vampiros”, de Zeca Afonso, o público rendeu-se completamente e fez-se notar, cantando em coro. “Eles comem tudo e não deixam nada”, cantava em protesto, fazendo já ponte para o tema seguinte, “Liberdade”, antes de “Quatro Quadras Soltas”, num registo quase revisteiro.
“O Primeiro Dia” puxou mais uma vez pelas cordas das gargantas de toda a gente. Sérgio Godinho provou de novo que está cada vez melhor, juntando canções novas e antigas, umas mais calmas outras mais mexidas, próprias e alheias, e contando como que uma história iniciada na repressão e no protesto, acabando com ecos da primavera de 25 de Abril de 1974. Num apelo ao que, afinal, era a razão de ali estar: o envio de cartas em defesa de Eskinder Nega e de milhares de outras vítimas do desrespeito dos Direitos Humanos.
Bem-dispostos, Markl e Palmeirim voltaram para homenagear o ícone que tinha acabado de pisar o palco. Em jeito de brincadeira com o recente Caríssimas Canções, pegaram numa guitarra acústica (Vasco Palmeirim) e num kazoo (Nuno Markl) e lançaram-se nas melodias de temas como “Wish You Were Here” (Pink Floyd), “Chamem A Polícia” (Trabalhadores do Comércio), “Borrow” (Silence 4), “Angie” (The Rolling Stones) e “Hotel California” (Eagles), colocando por cima as letras de “Com Um Brilhozinho Nos Olhos”, “Espalhem A Notícia”, “É Tão Bom”, “Cuidado Com As Imitações” e “Balada da Rita”.
Dois casos mais – a cambodjana Yorm Bopha, activista presa por defender o direito à habitação, e o bielorusso Ihar Tsikhanyuk, agredido pela polícia por ser homossexual –, introduziram Luísa Sobral, que entrou sozinha em palco e, sem nenhum acompanhamento, cantou “Blowin’ In The Wind”, de Bob Dylan, fazendo verter sem dó nem piedade o canal lacrimal de muitos espectadores. Já com outros três músicos em palco, o seu jazz doce e suave a fazer lembrar a romântica Paris não foi tão forte como Sérgio Godinho no que tocou ao registo mais interventivo, mas fez do público o que quis. E este ficou rendido e apaixonado pela sua voz quase-infalível e quase-perfeita. Quase no final, a banda saiu do palco para deixar Luísa fazer a sua magia a solo, só com uma guitarra nas mãos. De regresso ao palco, os elementos da banda traziam na mão um barrete de Pai Natal para cada um e outro, com tranças, para a vocalista. Com um toque de simpatia natalícia que já tinha começado logo no início do concerto, tocaram a novíssima “Canção de Natal”, solidária e de divertida ironia. Por fim, foi a vez do também agradável single “Xico” mostrar o que vale, depois de ser pedido inúmeras vezes pelo público. “O melhor para o fim.”
Antecedido pelo caso da aldeia palestiniana de Nabi Saleh, que tem sido vítima de violência, e com as esquizofrénicas projecções e coreografias do espectáculo de Batida, começava o final da festa, repleto de dança, cantigas de protesto, sorrisos e muito abanar de cabeças e corpos. O projecto de Pedro Coquenão trouxe Angola na mala e até reggae e rap no suor de todos os que invadiram o palco, na ânsia de transformar a energia da banda em movimentos de dança. Apesar da noite já ir longa para dia de semana e de muitos se começarem a levantar para sair, os Batida mostraram o que valiam, com evocações à democracia, justiça, igualdade e direitos que se fizeram notar especialmente num rap que pedia a “libertação da ditadura e tirania” em Angola, que gritava em nome de quem “fala a verdade e vai para o caixão” e que questionava “que raio de democracia é essa?”.
O evento foi cheio de momentos altos e vazio de baixos: um alinhamento impressionante de Sérgio Godinho, outro sorridente de Luísa Sobral e um ecléctico de Batida. E o público pôde assinar centenas de cartas que a secção portuguesa da Amnistia Internacional colocara em cada um dos bancos do teatro. A música foi, por uma noite, o envelope para ajudar pessoas concretas.
(Fotos: Valter Tavares Dinis)