21h41. O Music Box já ostentava uma fila para entrar que faria inveja a qualquer palco. Por lá podia-se ver de tudo: desde os jovens em plena puberdade, com a paixão de quem acabou de conhecer a beleza do bodyslam, do growl, dos bpm’s acelarados e das guitarras agressivas, até aos veteranos que contam já com décadas de concertos de hardcore em cima. Apesar de tantas diferenças, as caras eram as mesmas, e sentia-se um clima familiar no ar. Afinal de contas, estávamos prestes a sentir os corpos e o suor uns dos outros, berrando as mesmas canções. Expectava-se momentos de enorme intimidade. Sim, era isto mesmo: estávamos num concerto de hardcore.
20 minutos depois, os Same Old Chords já estavam a estrear o palco. Energia não faltava à vocalista Márcia, que se mostrava exímia na arte de berrar bem. «Quero sentir o vosso calor, cheguem-se à frente…» – disse Márcia apelando ao público. Começou com a “Every Single Day” para pessoas ainda tímidas que não eram capazes de não fazer o seu headbaging. Em músicas como “99 problems”, e não é a do Jay-Z, os refrões chorudos e as guitarras que tocavam como se fosse uma bateria punk (e com uma bateria punk) tornavam a tarefa de permanecer quieto impossível. Já se via em algumas canções o que se expectava: crowd surfing, pessoas a subirem ao palco para cantar como se fossem da banda e mosh. Mas não se esperava um mosh qualquer. Afinal de contas, estávamos em família.
22h36. Se os Same Old Chords tiveram a tarefa de despir a roupa, os Shape começaram os preliminares de forma urbana, visceral, directa e raivosa. Foi a segunda vez que os Shape abriram para Comeback Kid, visto que em 2012 já tinham feito no Santiago Alquimista. Para quem já conhecia, a eficácia emocional nas canções não era novidade; para quem não conhecia, era impossível não querer fazer parte daquela festa. O vocalista encarnava um ser incomodado, raivoso e demente, sempre com os fios do microfone a volta do pescoço. A força da banda esteve no negrume das melodias pesadas, que eram um incentivo ao caos, e no high pitched growl do vocalista João, que já emanava em conjunto com o guitarrista Diogo, a mesma raiva nos Taurina. Se para num concerto normal seria surpreendente ver “o vocalista rockstar” a cantar com o público e a fazer mosh como se fizesse parte desse mesmo público, num concerto de hardcore dos Shape isso já não é novidade. “I will never be like you” entoava-se, com uma imagem que marcaria a noite: um mágico circle pit que deixaria Andrew Neufeld espantado. O Music Box já estava pronto e composto e cheio para ver a sua expectativa realizada com Comeback Kid.
23h23. Quando olhamos para o pulso e o relógio dita dois números iguais é popular dizer-se que alguém está a falar ou a pensar em nós. Ali, no Music Box, não havia espaço para dúvida: os Comeback Kid pensavam em nós, ao entraram para tocar o seu novo álbum Die Knowing. Começaram exactamente com a canção que dá nome ao disco, mote para uma noite agressiva que juntava idades, corpos animados e transpiração. “Disapointment, Dedication, Elevated Catastrophe” era o que soava das gargantas de todos naquela sala, que mostravam ter o novo álbum decorado, quase como se o álbum já tivesse sido digerido há uns anos. Estar no meio daquela gigantesca cerimónia de música pesada era um pretexto para deixar lá a vida, visto que por uma noite podíamos ser dos Comeback Kid. O microfone roubado ao vocalista para cantar a “Losing Sleep” ou “a concept stays” era só mais um indício de que todos os que estiveram lá faziam parte daquele quinteto de guitarras distorcidas e baterias directas. Como Andrew Neufeld disse numa entrevista para a Hell Hound Music, «as canções do Die Knowing foram escritas para serem tocadas ao vivo». E deu para ver isso. As canções directas e dotadas de um hardcore cru não deixavam ninguém indiferente. Alias, em Wake The Dead, podíamos ver algo que só num concerto apaixonado de hardcore dá para viver: miúdos, graúdos, senhoras, senhores, t-shirts de NOFX, Joy Division e Clash, de todas as cores e classes, unidos pelo refrão, pelo suor e pelos circle pits num só organismo.
Isto é a cena hardcore, meus amigos. Está bem viva e recomenda-se. Por uma noite Lisboa foi outra e uma quarta-feira morta foi acordada pelos Comeback Kid. A verdade é que esta é a sexta vez que os Comeback Kid vêm a Portugal, e o “See you soon” de Andrew Neufeld profetiza que não será a última. «We all die alone» dizem os Comeback Kid. Mas não faz mal. Pelo menos morreremos com um concerto de Comeback Kid nas nossas memórias.
(Fotos: Francisco Fidalgo | Texto: Alexandre Malhado)
Muito bom.. adorei esta reportagem.