O Diabo na Cruz não consegue estar quieto e ainda bem: a meio das gravações do novo disco, decide presentear os seus ávidos fãs com um concerto gratuito na capital do império. E que senhor concerto. Assim que o Tivoli ouve o primeiro acorde de “Vida de Estrada” (o belo single de avanço), toda a plateia se levanta em uníssono, dançando, pulando e cantando, que o Diabo na Cruz não é criatura para se apreciar sentado e em silêncio.
“Espectáculo” será pouco para qualificar o que aconteceu nesta noite. Mais apropriado será dizermos “ritual de comunhão colectiva”, de tal forma todos celebrámos cúmplices a mesma portugalidade reinventada. Seja na mais recôndita aldeia do país, seja na cosmopolita avenida da liberdade onde estávamos, Diabo na Cruz sabe sempre a bailarico de verão – com sardinha no pão, mau vinho da cooperativa, foguetes e quermesse -, sempre visto através dos olhos esbugalhados do puto da grande cidade que passa as férias grandes na terra dos avós, o paraíso perdido da nossa infância.
Foi tudo isso que sentimos nesta noite mágica: o casamento (e quem é fã saberá bem que a palavra não é inocente) entre o rural e o urbano, o moderno e a tradição, o rock anglo-saxónico e a música popular portuguesa, como se a icónica “Dona Ligeirinha”, a tal moçoila que vemos na capa de Virou! – vestida à minhota mas com óculos escuros e cuecas à mostra – dançasse connosco noite fora. Diabo na Cruz consegue essa difícil proeza: soar português até à medula ao mesmo tempo que o faz com linhas de guitarra eléctrica, baixo, bateria e teclados descaradamente anglófilos, como se o Vitorino e os Bloc Party tivessem sido triturados na mesma batedeira eléctrica.
O alinhamento foi equilibrado: oito canções do primeiro álbum Virou! (para mim, a sua grande obra-prima); seis para o segundo Roque Popular (mais denso e intimista, que primeiro se estranha e depois se entranha); duas para o EP Combate (entre as quais, a inventiva cover dos Gaiteiros de Lisboa “Lenga Lenga”) e três para o novo disco, ainda sem nome, que sairá lá para o fim do ano. A julgar pela amostra, o álbum fará uma síntese entre o imediatismo de Virou! e a sofisticação de Roque Popular.
Jorge Cruz esteve, como sempre, imparável. Quando anunciou “Os Loucos Estão Certos” disse com cumplicidade: “Os loucos estão certos e se calhar até há alguns aqui…” Em “Fecha a Loja”, Cruz vai para cima da bateria, saltando mais tarde para o chão de guitarra empunhada. No “Corridinho do Verão”, Jorge entra plateia adentro, espalhando pétalas de flores por cima do pessoal (um statement de orgulho pelas nossas tradições ancestrais) e regressa depois ao palco, vazando um recipiente cheio em cima da cabeça do baterista- o imenso João Pinheiro. Aliás, todos os seis músicos são excepcionais. Se sentimos algumas saudades dos tempos em que B Fachada andava por cá, a viola braguesa e segundas vozes de Sérgio Pires providenciam a melhor das terapêuticas de substituição.
No final do concerto, já com o depósito de portugalidade atestado, voltámos felizes para casa. Ao rumar avenida da liberdade abaixo, pensei cá para os meus botões que a música popular portuguesa pode hoje dormir descansada. A tradição inaugurada por Zeca Afonso de reinventar as nossas raízes tem passado sempre para a geração seguinte: do Fausto e Godinho para a Banda do Casaco e Trovante; dos Sitiados e Amélia Muge para A Naifa e o Diabo na Cruz. Agora que a chama de Zeca passou para minha geração, já não tenho mais medo das nossas rádios e televisões comezinhas, aquelas que tentam diariamente uniformizar a cultura de forma a que o mundo mais não seja do que uma imensa e gigantesca América. Podem bombardear à vontade! Com as bombas-canções do Diabo na Cruz nas mãos, nós vamos resistir até ao fim!
Fotos: Mário Romano
Alinhamento:
1- Vida de Estrada
2- Combate com Batida
3- Tão Lindo
4- Os loucos estão certos
5- Sete Preces
6- Luzia
7- Ganhar o Dia (inédita)
8- Dona Ligeirinha
9- Lenga Lenga
10- Casamento
11- Chegaram os Santos
12- Fronteira
13- (Inédita)
14- Corridinho do Verão
15- Fecha a Loja
16- Bico de um Prego
17- Memorial dos Impotentes
18- Bomba-Canção
19- Bom Tempo