Uma noite mágica, aquela que algumas centenas de pessoas puderam presenciar no sábado passado. O muito aguardado (e esgotado) concerto de Bill Callahan no São Jorge, numa organização do Teatro Maria Matos, foi uma noite de comunhão, de respeito e de contida celebração.
Callahan apresentou-se em palco com mais três músicos, o núcleo duro a quem coube transportar a sonoridade dos dois últimos discos do americano e que assegurou, com segurança e brilhantismo de improvisação, a transição para o palco.
Perante uma sala repleta, Callahan apresentou-se bem disposto, enfim, tão bem-disposto quando ele pode ser. Apesar de tudo, uma ou duas frases entre as músicas, assegurando que a plateia se estava a portar “maravilhosamente” e até, num dos muitos improvisos instrumentais da noite, sentiu-se livre o suficiente para simular uns bem humorados passinhos de dança. Um Bill Callahan menos tenebroso, portanto, do que dele se diz e se ouve nas suas palavras.
Em cerca de hora e meia de concerto, 13 músicas, todas partilhando do mesmo ambiente e sem grandes quebras de mood. O grosso da setlist foi, como seria de esperar, retirado de Dream River, disco com o qual o autor conseguiu, se não fama e dinheiro, pelo menos o reconhecimento artístico de boa parte da crítica mundial. Figurou, merecidamente, nos lugares cimeiros de muitos tops de 2013 (foi, para o Altamont, o 6º melhor disco do ano). Das 13 músicas, mais de metade – sete – foram retiradas de Dream River; Apocalypse, o anterior registo de 2011, forneceu três canções, e com isto temos o grosso do concerto. Faz sentido: são dois discos gémeos, assentes na mesma forma elegante, fluida e espartana de fazer música, e praticamente com o mesmo pessoal nos instrumentos e em estúdio. O restante foi “Too Many Birds”, a única chamada do disco perfeito Sometimes I wish We Were an Eagle, de 2009; “Dress Sexy at My Funeral”, de Songs of Devotion, de 2000, e único momento em que Callahan evocou os tempos em que trabalhava sob o nome Smog; e “Please Send me Someone to Love”, um cover da música de Percy Mayfield, de 1950, que tem sido habitual nesta digressão.
Entre os vários momentos de destaque da noite, saliento dois.
Em primeiro lugar, “America”, de Apocalypse, numa versão longuíssima, estranha e poderosa, um rock funk imparável como um comboio, mostrando uma força e um carácter que a versão em estúdio não fez justiça. O ponto mais significativo do concerto.
Em segundo lugar, no último tema, “Winter Road”, a deambulação sonora levou-o a uma clareira, que ele aproveitou para, sob uma ligeira cama de improviso/repetição instrumental, elogiar Lisboa, o público e a refeição dessa noite. “Bacalao/we had bacalao/too much salt/we don’t need it now/we’ve got refrigerators now”, cantou ele, fazendo rir a audiência que havia sido avisada, pelo artista, de que aquela seria a despedida, a última música. Esta contou com parte de “Riding for the Feeling”, mais um dos momentos altos de Apocalypse, com Callahan a socorrer-se das úteis e apropriadas linhas de “It’s never easy to say goodbye/to the faces/so rarely do we see another one/so close and so long”.
Em palco, todas as músicas foram alvo de transformação, algumas ao ponto de ficarem perto de irreconhecíveis, num espectáculo que conseguiu sempre alternar o risco do improviso e da exploração com a segurança das melodias. E, claro, aquela voz. Que, só ela, aguentaria qualquer coisa. A banda, simples, discreta mas magnífica, com enormíssimo destaque para o guitarrista Matt Kinsey. Este é não apenas um instrumentista brilhante, que alterna solos (e ataques a lembrar o som cortante de Marc Ribot) com rendilhados e pormenores fabulosos no backgroung da voz de Callahan: é, neste momento, essencial ao som que o cantautor construiu para si próprio nos últimos anos. Os três músicos sentados, sempre, e apenas Bill Callahan sempre em pé, de guitarra-ritmo em punho, mexendo-se pouco na maior parte do tempo.
Do público, o que podemos dizer é que foi respeitoso, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Grande aplauso no final de cada música, para de novo se fazer silêncio; aqui não estamos em território de fãs histéricos dos Tokyo Hotel, mas sim entre conhecedores da música de Bill Callahan que, devotamente, vieram para vê-lo e ouvi-lo cantar. Com respeito, com admiração, com o sentimento de privilégio por estar a presenciar o espectáculo de um homem que não faz apenas música de qualidade: faz música para resistir ao tempo, num campeonato só seu, e está, neste ano da graça de 2014, no topo inquestionável da sua forma, numa já longa carreira.
E, tal como prometera, sem encore, lá foi ele. Fiquei a lamentar-me de não ter ouvido esta ou aquela, sobretudo “Jim Cain”, de Sometimes I Wish We Were an Eagle. Mas depressa me passou. Foi, de facto, um privilégio ver este homem, e quereríamos sempre mais, obviamente. Mas dificilmente teríamos melhor, e isso é dizer tudo.
Última palavra para a primeira parte, a cargo de Circuit des Yeux, nome sob o qual actua a norte-americana Haley Fohr. Num ambiente não adverso mas naturalmente desinteressado, mostrou a sua personalidade muito própria: guitarra acústica no colo e, sobretudo, uma voz capaz de mover montanhas. Fez lembrar uma Anna Calvi possuída, e o risco da sua performance e o desconforto que gerou em parte da audiência só lhe vale, da nossa parte, aplausos. Uma primeira parte é isto, deixar uma impressão. Para ser igual a tudo o resto não vale a pena. A rever, noutras circunstâncias, mas só para feitios mais fortes.
Alinhamento:
1 – The Sing
2 – Javelin Unlanding
3 – Small Plane
4 – Too many birds
5 – America
6 – One fine morning
7 – Ride my arrow
8 – Drover
9 – Dress sexy at my funeral
10 – Spring
11 – Please send me someone to love
12 – Seagull
13 – Winter Road/Riding for the feeling
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(Fotos: Duarte Pinto Coelho)